quarta-feira, 8 de setembro de 2010

William Hazlitt- Da Desvantagem da Superioridade Intelectual

por William Hazlitt

traduzido por: Leandro Diniz ||

fonte: http://www.blupete.com/Literature/Essays/Hazlitt/TableTalk/Superiority.htm

Vai-me perdoar o leitor pela tradução. Não que considere estar ruim, mas certamente ótima não está. Hazlitt era um escritor dos mais redondos. Transitava entre as expressões cultas e diárias tão facilmente quanto manejava as liberdades gramaticais da sua língua. Tais elementos são deveras difíceis de resolver. Mas dada a pertinência do tratamento para o estudo do nosso meio, que deixa o ambiente do próprio escritor um paraíso, tive de publicá-la, a transcrição. Como noutras transliterações, as notas próprias do autor vão sem nenhuma indicação, as que estão indicadas como [notas do editor] são do editor do livro, cuja edição não faço a mínima noção. E, ainda, as notas assinaladas como [notas do trad.] são as que eu mesmo pus contextualizando, no máximo que pude, as referências e citações. Sem mais, boas leituras.

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A principal desvantagem de saber mais, e enxergar mais além do que os outros, é geralmente não ser entendido. Um homem está, em conseqüência disto, sujeito a originar paradoxos, que imediatamente o transportam para além do alcance do leitor comum. Uma pessoa falando, uma vez, de uma maneira trivial de um homem de mente muito original, recebeu como resposta: "Ele caminha com passos tão largos, tão longe de você, que ele diminui à distância."

Petrarca reclamava que a "Natureza o fez diferente das outras pessoas" — singular d'altri genti. A grande felicidade da vida é: nem estar melhor nem pior do que o rumo geral daqueles com quem você se encontra. Se você está abaixo deles, você é atropelado; se está acima deles, logo encontra um nível mortificante na diferença deles, sobre a qual você, particularmente, se aborrece. Qual é a utilidade de ser moral em uma cela de prisão ou sábio em Bedlam[1]? "Ser honesto, como anda este mundo, é ser um homem escolhido dentre dez mil outros." Assim diz Shakespeare; e os comentadores não adicionaram que, sob tais circunstâncias, um homem é mais provável tornar-se um fundo de calúnia do que o alvo de admiração, por assim ser. "Que passa, meu caro colega?"[2] é a resposta usual a todas estas pretensões excessivas. Ao não fazer [em Roma] como faziam aqueles em Roma, nós cortamos nós mesmos da sociabilidade e da sociedade. Falamos outra língua, temos noções de nós próprios e somos tratados como uma espécie diferente. Nada pode ser mais complicado que adentrar com tais idéias rebuscadas no rebanho comum, que certamente vai

"Permanecer de todo atônito, como um tipo de novilhos,

Entre quem alguma besta de raça estranha e estrangeira

Inconsciente é sucedida, vagueando longe de seus pares: Assim

vão seus olhares medonhos trair seus medos ocultos."

"Stand all astonied, like a sort of steers,

'Mongst whom some beast of strange and foreign race

Unwares is chanced, far straying from his peers: So

will their ghastly gaze betray their hidden fears."

A ignorância do propósito do outro é uma causa suficiente de medo e medo produz ódio: por isso a suspeita e o rancor lançados contra todos aqueles os quais estabelecem um refinamento e sabedoria maiores, que seus vizinhos. É em vão pensar em amaciar este espírito de hostilidade pela simplicidade nas maneiras ou pela condescendência às pessoas de menor estatura. Quando mais condescendente, mais eles vão atrever-se em relação a isto; eles o temerão menos, mas te odiarão mais; e estarão mais determinados a se vingar de você pela superioridade, para a qual eles estão inteiramente na escuridão e da qual você mesmo parece nutrir dúvidas consideráveis. Toda a humildade do mundo apenas passará por fraqueza e idiotice. Eles não possuem a noção de tal coisa. Eles sempre querem dar uma boa impressão; e argumentam que você faria o mesmo se tivesse quaisquer de tais talentos dos quais as pessoas falam. Portanto, é melhor você jogar fora o grande homem de uma vez -- ser valentão, arrogante, falar empostado e passar por cima deles: você pode, através disso, pretender extorquir um respeito externo ou uma civilidade comum; mas você não terá nada (com as pessoas baixas) pela paciência e boa natureza, somente o insulto declarado ou um desprezo silencioso. Coleridge sempre fala com as pessoas sobre o que elas não entendem: eu, por exemplo, procuro falar com elas sobre o que elas realmente entendem, e encontro somente a mais má-vontade com isso. Elas julgam que eu não penso delas como capazes de nada melhor; que eu não penso que vale à pena, como o vulgo diz, lançar uma palavra aos cães. Eu, certa vez, reclamei disto com Coleridge, pensando nisto à duras penas, que eu devesse ser enviado a um Convento por não fazer uma exibição prodigiosa. Ele disse: "Na medida em que você assume um personagem, você deve produzir suas credenciais. É um ônus sobre a boa natureza das pessoas admitir algum tipo de superioridade, mesmo quando existe a prova mais evidente disto; mas é uma tarefa muito dura para a imaginação admiti-lo sem qualquer fundamento aparente disso."

Não existe, então, um erro maior que supor que você evita inveja, malícia e a falta de caridade, tão comuns no mundo, indo entre as pessoas sem pretensões. Não existem pessoas que não tenham pretensões; ou menores suas pretensões, menos elas podem agüentar reconhecer as suas sem algum tipo de apreço recebido. Quanto mais informações os indivíduos possuem, ou quanto mais eles se aperfeiçoaram em dado assunto, tanto mais eles prontamente podem conceber e admitir o mesmo tipo de superioridade, que sentem dos outros, a si mesmos. Mas da ignorância e vulgaridade baixas, imbecis e do nível do esgoto, nenhuma idéia ou amor à excelência pode surgir. Você pensa que está indo consideravelmente bem com eles; que você está deixando de lado a secura do pedantismo e da pretensão e ganhando o caráter de um tipo de simples, despretensioso e bom companheiro. Isto não funcionará. Durante todo o tempo em que você está fazendo estes avanços familiares, e esperando estar à vontade, eles estão tentando te passar pra trás. Você pode esquecer que você é um autor, um artista ou que não é -- eles não esquecem que não são nada, nem diminui a ponta de desejo de provar que você está na mesma situação. Eles lançam mão de alguma circunstância da sua roupa; sua maneira de entrar numa sala é diferente da dos outros; você não come vegetais -- isto é estranho; você possui uma expressão particular, que eles repetem e isto torna-se um tipo de piada padrão; você parece grave, ou doente; você fala, ou é mais silencioso que o normal; você está, ou não está, com dinheiro: todas essas pequenas e insignificantes circunstâncias, nas quais você se assemelha, ou difere das outras pessoas, formam muitos dos pontos da acusação contra você que está acontecendo na imaginação delas, e são muitas as contradições no seu caráter. A qualquer outra pessoa eles passariam em branco, mas a uma pessoa da qual eles ouviram tanto, não podem de todo evitar. Enquanto isso, aquelas coisas nas quais você pode realmente ser excelente passam em branco, pois eles não podem julgá-las. Eles falam muito bem de algum livro que você não gosta e, portanto, você não responde. Você recomenda a eles irem ver alguma pintura, na qual eles não acham muito a admirar. Como você os convencerá que está certo? Você pode fazê-los perceber que as falhas estão neles e não na pintura, ao menos que você consiga dar-lhas seu conhecimento? Elas mal distinguem a diferença entre um Correggio[3] e uma sujeira qualquer. Isto lhe deixará mais próprio de um entendimento? Quanto mais você sabe a diferença, mais profundamente você a sente, ou mais intensamente você deseja transmiti-la, mais longe você se encontra encerrado à uma distância incomensurável da possibilidade de conduzi-los a visões e sentimentos para os quais eles não possuem nem mesmo os primeiros rudimentos. Você não pode fazê-los ver com seus olhos e eles devem julgar por si mesmos.

A força intelectual não é igual a física. Você não tem poder no entendimento dos outros, a não ser pela simpatia deles. Você saber, de fato, muito mais sobre um assunto, não te dá uma superioridade, ou seja, um poder sobre eles, mas apenas torna mais impossível para você fazer a mínima impressão neles. É, então, uma vantagem para você? Pode ser, enquanto está relacionada a sua própria satisfação, mas isto coloca um fosso profundo entre você e a sociedade. Isto coloca tropeços a cada curva do seu caminho. Tudo aquilo pelo que você tem o maior orgulho e prazer está perdido aos olhos vulgares. Com o que eles ficam satisfeitos é certa indiferença ou desgosto por você. Ver várias pessoas folhear um portfólio de gravuras de diferentes mestres; que desafio isto é para a paciência, como dá nos nervos ouvi-las cair encantadas com alguma banalidade de lugar comum e passar sobre alguma divina expressão de fisionomia sem notar, ou com uma observação de que ela é muito peculiar? Quão inútil é, em tais casos, se abalar ou argumentar ou protestar? Não é, tão bom também, estar sem todo esse conhecimento hiper-crítico e fastidioso e ser agradado ou desagradado como for, ou lidar com a primeira falha ou beleza que é apontada pelos outros? Eu ficaria grato em mudar minha familiaridade com as pinturas e livros e, certamente, o que eu sei da humanidade, pela ignorância comum delas.

Está registrado na vida de algum notável (de quem o nome eu me esqueci) que foi um daqueles "que amava a hospitalidade e o respeito": e eu confesso pertencer à mesma classe do gênero humano. A civilidade está comigo como uma jóia. Eu gosto de um pouco do elogio confortável e do papo indolente e descuidado, eu odeio ser sempre sábio, ou buscando a sabedoria. Eu tenho muito a ver com cabalas literárias, questões, críticos, atores, escrita de ensaios, sem levá-los comigo para a diversão e para todas as companhias. Eu desejo, nesses momentos, passar como uma companhia bem-humorada; e boa vontade é tudo que eu quero em retorno para ser uma boa companhia. Eu não desejo estar sempre me colocando, e aos outros, as questões do destino, do livre-arbítrio, presciência absoluta, etc. Eu devo afrouxar algumas vezes. Devo ocasionalmente parecer inculto. O tipo de conversa que mais me incomoda é aquele de como está o dia e se provavelmente amanhã vai chover ou terá um dia limpo. Isto eu considero embora apreciando o otium cum dignitate, o ócio honrado, como o fim e privilégio de uma vida de estudos. Eu me resignaria a este estado de fácil indiferença, mas eu noto que não posso. Devo manter uma certa pretensão, que está muito longe do meu desejo. Devo ficar na defensiva. Eu devo assumir o desafio continuamente, ou acho que estou perdendo terreno. "Eu não sou nada, senão crítico." Enquanto eu estou pensando que horas são ou como eu vim a citar inadvertidamente uma passagem bem conhecida, como se eu o tivesse feito de propósito, os outros estão pensando se eu não sou verdadeiramente um colega maçante como, algumas vezes, dizem que sou. Se uma chuva garoa tamborilando contra as janelas, isto me trás à mente uma suave chuva de primavera, da qual eu escapei vinte anos atrás, em um pequeno bar perto de Wem em Shropshire e enquanto eu olhada para as plantas e arbustos, ante a porta, bebendo do orvalho úmido, sorvia um copo de cerveja espumante e voltei para casa no crepúsculo da noite, mais claro para mim do que o sol do meio dia como está agora! Devo suavizar este sentimento? Em vão. Eles me perguntam quais são as novidades e me encaram se eu digo que não sei. Se uma nova atriz apareceu, por que eu devo tê-la visto? Se um novo romance surgiu, por que eu devo tê-lo lido? Uma vez, eu costumava ir sentar-me à mesa de cribbage[4] com um amigo, depois devorava um frio bife de lombo de vaca e fazia umas observações desinteressadas, de um jeito que me satisfazia, mas isso não durou muito. Eu estabeleci uma pequena pretensão e, portanto, esse pouco que foi estabelecido por mim foi tomado de mim. Como eu mesmo não disse nada sobre aquele assunto, era continuamente jogado na minha cara que eu era um autor. Tendo-me nesta desvantagem, meu amigo queria se aproveitar de uma falha ou duas no jogo, e ficava insatisfeito se eu não o deixasse. Se eu o ganhava, seria estranho se ele não entendesse o jogo melhor do que eu. Se eu mencionava meu jogo favorito de raquetes[5], existia um silêncio geral, como se este fosse meu ponto fraco. Se eu reclamava de estar doente, era perguntado por que eu me deixei ficar. Se eu dizia que um ator tinha atuado bem em tal parte, a resposta era: existe uma opinião diferente em um dos jornais. Se qualquer alusão era feita aos homens de letras, existia um riso suprimido. Se eu contava uma estória engraçada, era difícil dizer se o riso era por minha causa ou por causa da narrativa. A esposa me odiava pelo meu rosto feio; os serventes porque eu não podia sempre dispô-los de tickets para o teatro e porque eles não podiam dizer exatamente o que um autor exatamente significava. Se um parágrafo parece diferente de tudo que já tinha escrito, eu achava que já estava pronto antes de mim e que eu iria ser amplamente criticado. Eu me submetia a tudo isto até ficar cansado, depois desisti.

Uma das misérias das pretensões intelectuais é que nove décimos daqueles com quem você travar contato não sabem se você é um impostor ou não. Eu temia que certas críticas anônimas fossem parar nas mãos dos serventes dos locais que eu freqüentava ou que meu chapeleiro ou meu sapateiro calhassem de lê-los, os quais possivelmente não podem dizer se elas são bem ou mau fundamentadas. A ignorância do mundo deixa qualquer um à mercê da sua malícia. Existem pessoas das quais você deseja uma boa opinião ou uma boa vontade, deixando de lado qualquer pretensão literária; e é duro perder, por um mau relato (o qual você não possui nenhum meio de retificar), o que você não pode ganhar por um bom. Depois de uma diatribe no Quarterly[6] (que é trazido por um cavalheiro que ocupa meu apartamento antigo no primeiro andar)[7] meu senhorio me trouxe sua conta (de algo pendente), e sobre a minha oferta de dá-lo a maior parte em dinheiro e um cheque para o resto, balançou a cabeça, e disse: que receava não poder aceitá-lo. Logo depois, a filha entra e, à minha cuidadosamente menção das circunstâncias para ela, respondeu gravemente: "que, de fato, seu pai esteve quase arruinado pelas contas." Esta é a pior situação de todas. É em vão para mim empenhar-me em explicar que a publicação na qual eu sou caluniado é um mero mecanismo do governo -- um órgão de uma facção política. Eles não sabem nada sobre isto. Sabem apenas que tais e quais imputações foram lançadas; e quanto mais eu tento destruí-las, mais eles pensam que existe alguma verdade nelas. Talvez as pessoas da casa eram Tories[8] ferrenhos -- algum tipo de agentes do governo. É para que eu esclareça a ignorância deles? Se eu disser que uma vez escrevi uma coisa chamada "Prince Maurice´s Parrot", e "Essay on the Regal Character"[9], o primeiro no qual uma alusão é feita a um nobre marquês, e no último a uma grande personalidade (assim pelo menos, me disseram, ela tinha sido considerada) e as quais o Sr. Croker tem instruções peremptórias para retaliar; eles não podem conceber qual conexão pode existir entre mim e tais distintas personalidades. Eu não agüento mais. Tal é a miséria das pretensões além de sua situação imediata; e que não são ajudadas por quaisquer símbolos externos, inteligíveis para toda a humanidade, de riqueza ou posição social!

A impertinência da admiração é dificilmente mais tolerável do que as demonstrações de desprezo. Eu conheci uma pessoa, que eu nunca tinha visto antes, me perseguindo durante toda a hora do jantar, perguntando quais artigos eu tinha escrito na Edinburg Review. Eu estava, pelo menos, envergonhado de responder aos meus esplêndidos pecados daquela maneira. Outros vão pegar algo que não é seu e dizer que eles estão certos de que mais ninguém poderia tê-lo escrito. Pela primeira frase eles sempre podem dizer seu estilo. Agora, eu odeio que meu estilo seja conhecido; como eu odeio toda idiossincrasia. Estes bajuladores obsequiosos não poderiam prestar-me pior elogio. Então, existem aqueles que se esforçam para ler tudo o que você escreve (o que é exagero); enquanto outros, mais provocadores, regularmente emprestam suas obras aos amigos assim que as recebem. Eles sabem, bastante bem, tuas noções sobre os diferentes assuntos, de ouvir você discursando sobre eles. Além do mais, eles têm em mais alta conta o seu caráter pessoal, que têm sobre seus escritos. Você explica as coisas melhor de uma maneira comum quando não está visando um efeito. Outros lhe dizem das falhas, que ouviram dizer, foram encontradas no seu último livro e que defendem seu estilo, em geral, da acusação de obscuridade. Um amigo, uma vez me contou, de uma disputa que ele teve com um chegado, este negou que eu sabia soletrar as palavras mais comuns. Estas são comunicações confidenciais confortáveis, às quais os autores, que possuem seus amigos e seus desculpadores, estão sujeitos. Um cavalheiro me disse, que uma moça objetou meu uso da palavra aprendedor[10], como má gramática. Ele disse que achou uma pena que eu não tivesse mais cuidado, mas que a moça talvez fosse preconceituosa, pois seu marido tinha um cargo no governo. Eu procurei pela palavra e a encontrei em um lema de Butler. Eu estava ressentido, e desejava que ele dissesse à tal crítica, que a falha não estava em mim, mas em alguém que tinha muito mais sabedoria, mais aprendizado e lealdade do que eu poderia pretender ter. Então, novamente, alguém vai escolher a coisa mais rasa que puder encontrar, para enchê-la com panegíricos; e outras lhe dizem (como meio de deixá-lo ver quão prestigiosa acham sua capacidade), que suas melhores passagens são falhas. Lamb tem uma habilidade de saborear (ou como ele diria, paladear[11]) o insípido. Leigh Hunt tem um truque de se afastar dos bocados saborosos que você põe em seu prato. Não existe o começar para algumas pessoas. Faça o que fizer, elas podem fazer melhor; encontre o sucesso que for, a boa opinião delas as mantém em melhor lugar, e correm ante o aplauso do mundo. Certa vez, mostrei a uma pessoa desta inclinação presunçosa (com não pouco triunfo, eu confesso) uma carta de um relato lisonjeiro que eu recebi de um celebrado Conde Stendhal, datada de Roma. Ela recebeu isto com um sorriso de indiferença e disse que tinha recebido ele mesmo uma carta de Roma no dia anterior, de seu amigo S------! Eu não pensei disto "pertinente ao assunto". Godwin pretende que eu nunca escrevi nada que valesse um centavo, somente meu "Answers to Vetus"[12] e que eu falhei completamente quando tentei escrever um ensaio, ou qualquer coisa que fosse mais curta.

O que alguém pode fazer em tais casos? Eu devo confessar uma fraqueza? O único contra-argumento que eu conheço a estas recusas e mortificações é, algumas vezes, uma nota acidental ou um sinal distintivo de um estranho. Eu sinto a força do digito mostrari [uma pessoa para apontar] de Horácio -- eu gosto de ser apontado na rua ou ouvir as pessoas perguntarem na quadra do Sr. Powell[13], quem é o Sr. Hazlitt? Isto é para mim uma extensão agradável da identidade pessoal de alguém. Seu nome, tão repetido, deixa um eco como uma música aos ouvidos: atiça o sangue como o som de um trombeta. Isto mostra que as outras pessoas estão curiosas para ver você: que elas pensam em você e sentem um interesse em você sem que você saiba. Isto é uma almofada sobre a qual recostar-se; um forro para sua pobre, estremecida, maltrapilha opinião sobre si mesmo. Você quer alguma coisa tão cordial aos espíritos exaustos e alívio da monotonia das especulações abstratas. Você é algo; e, por ocupar um lugar nos pensamentos dos outros, pensa menos desdenhosamente de si mesmo. Você está mais capaz para encarar os desafios do preconceito e da injúria vulgar. É agradável, desta maneira, ter sua opinião citada contra você e seus próprios ditos repetidos para você como coisas boas. Estava uma vez falando ao poço com um homem inteligente e criticando a performance do Sr. Knight de Filch[14]. "Ah!", ele disse, "o pequeno Simmons era o rapaz para interpretar este personagem." Ele adicionou, "existia uma observação, das mais excelentes, feita sobre sua atuação no 'Examiner' (penso que seja) -- Que ele pareceu como se tivesse uma forca em um olho e uma bela garota no outro."[15] Eu nada disse, mas estive de memorável bom humor o resto da noite. Eu raramente estive em companhia onde o jogo de Fives[16] fosse mencionado, mas alguém perguntou, no curso da conversa. "Deus, alguém já viu uma consideração sobre um tal de Cavanagh[17], que apareceu algum tempo atrás na maioria dos jornais? É sabido quem escreveu isso?" Estes são momentos tentadores. Eu triunfei sobre uma pessoa, de quem o nome eu não mencionarei, na seguinte ocasião. Sucedia de eu estar falando algo sobre Burke e estava expressando minha opinião dos seus talentos sem medir meus termos, quando este cavalheiro me interrompeu dizendo que ele pensava, de sua parte, que Burke tinha sido grandemente superestimado e, então, adicionou, em sua maneira descuidada: "Deus, você leu uma caracterização dele no último número da ------------ ?"; "Eu a escrevi!"[18] -- Eu não pude resistir à antítese, mas estava, depois, envergonhado de minha petulância momentânea. Contudo, ninguém que eu encontro jamais me poupa.

Algumas pessoas procuram e intrometem-se nas personalidades públicas, para, como parece ser, buscar suas falhas e, mais tarde, denunciá-las. Aparências são para isto, mas a verdade e um melhor conhecimento da natureza são contra esta interpretação do assunto. Sicofantas e bajuladores são, não intencionalmente, traiçoeiros e inconstantes. Eles estão inclinados a admirar desordenadamente a princípio e não encontrando um fornecedor constante de comida para seu tipo de apetite doentio, eles tomam nojo do objeto de sua idolatria. Para estarem quites com sua credulidade, eles afiam sua astúcia para espionar falhas e ficam deleitados ao descobrir que as respostas são melhores que seu desejavam primeiramente. É um caso de estudo, "animado, audível e cheio de ventilação". Eles possuem o órgão da admiração e o órgão do medo em níveis proeminentes. O primeiro requer novos objetos de admiração para satisfazer seus desejos inquietos; o segundo os fazem curvar-se ao poder aonde quer que seu critério mutante aporte, voluntariosos de bajular todos os partidos e prontos para trair qualquer um, com sua pura fraqueza e servilismo. Eu não acho que eles signifiquem nenhum mal: pelo menos, eu posso olhar para esta dissimulação com indiferença, em meu próprio caso particular. Eu tenho estado mais disposto a ressenti-lo quando eu o tenho visto ser praticado sobre outros, onde tenho sido mais capaz de julgar a extensão do prejuízo e a insensibilidade e a loucura idiota que isto revela.

Eu não acho que grandes realizações intelectuais são, de algum modo, recomendadas às mulheres. Elas as confundem e são uma divergência à questão principal. Se scholars falam com as damas do que eles entendem, suas ouvintes não são as mais sábias; se eles falam sobre outras coisas, eles apenas provam-se idiotas. A conversa entre Angelica e Foresight em "Love for Love"[19] é uma receita completa para todo este nonsense esgotante: enquanto ele está divagando sobre os signos do zodíaco, ela está na ponta dos pés na terra. Tem sido observado que os poetas não escolhem suas amantes muito sabiamente. Creio que não é escolha, mas necessidade. Se eles pudessem dar o lenço como o Grand Turk[20], imagino que veríamos escassas mortais, mas, ao invés, deusas, rodeando seus passos e cada uma exclamando, com a própria criada jônia de Lord Byron:

"Então tu deverás encontrar-me sempre a teu lado,

Agora e de hoje em diante, se o último puder ser!"

"So shalt thou find me ever at thy side,

Here and hereafter, if the last may be!"

Ah! não, estes são evidentes, ganhos por homens de mortal, e não de etérea, forma e daí em diante o poeta, em cuja mente as idéias de amor e beleza são inseparáveis, como os sonhos do sono, vão sobre a esperança desamparada da paixão e vestem a primeira Dulcinéia que terá compaixão dele, com todas as cores da fantasia. De que serve isto de reclamar, se a ilusão dura por toda a vida e o arco-íris ainda pinta sua forma na nuvem?

Existe um erro que eu desejaria, se possível, reparar. Os homens de letras, artistas e outros, não tendo êxito com as mulheres a uma certa posição na vida, pensam que a objeção é pelo desejo delas de fortuna e que subsistirão melhores chances se descerem mais baixo, onde apenas suas boas qualidades ou talentos serão apreciados. Oh! cada vez pior. A objeção é para eles mesmos, não para sua fortuna -- à sua abstração, à sua ausência mental, às suas noções ininteligíveis e românticas. Mulheres educadas podem ter um vislumbre do seu significado, podem ter uma pista ao seu caráter, mas a todas as outras eles são densas trevas. Se a amante sorri a seus avanços ideais, a criada rirá sem reservas; ela joga água em você, chama a irmã para ouvir, envia seu namorado para perguntar a você o que quis dizer, jogará a vila ou a casa contra você; será uma farsa, uma comédia, a brincadeira constante do ano e, então, o assassino se revelará. Scholars deviam ser jurados em Highgate.[21] Eles não são páreos para as arrumadeiras e para as serventes das hospedarias. Eles têm melhores chances com herdeiras ou damas de qualidade. Estas últimas têm altas noções de si mesmas que podem ajustar-se a alguns de seus epítetos! Elas estão acima da mortalidade, assim como seus pensamentos! Mas com a vida inferior, a artimanha, a ignorância e a trapaça, vocês não têm nada em comum. Quem quer que você seja, que pense poder fazer um compromisso ou uma conquista lá, pela boa natureza ou bom senso, esteja avisado por uma voz amigável e se retire a tempo desta disputa desigual.

Se, como eu disse acima, scholars não são páreos para arrumadeiras, por outro lado, cavalheiros não são páreos para canalhas. Os primeiros estão com a sua honra, eles agem com medida; os últimos aproveitam todas as vantagens e não têm nem idéias nem princípios. É embasbacante quão rápido alguém sem educação aprenderá a trapacear. Ele é impenetrável a qualquer raio do conhecimento liberal; seu entendimento é

"Não penetrável pelo poder de qualquer estrela"

"Not pierceable by power of any star"

mas é poroso a todos os tipos de truques, sofismas, estratagemas e garotices, pelos quais qualquer coisa pode ser conseguida. Sra. Peachum, de fato, diz, que para suceder na mesa de jogo, o candidato deve ter a educação de um nobre. Eu não sei o quanto este exemplo contradiz a minha teoria. Eu penso que é uma regra que aos homens de negócios não devem ser ensinadas outras coisas. Qualquer um estará quase certo de fazer dinheiro se não tem outra idéia em sua mente. Uma educação universitária, ou o estudo intenso da verdade abstrata, não habilitará o homem a conseguir barganhar, a levar a melhor sobre outro ou mesmo de resguardar-se de ser passado para trás. Como Shakespeare diz, que " ter uma boa aparência é efeito do estudo, mas ler e escrever vem por natureza": pois pode ser argumentado, que para ser um tratante basta um dom da sorte, mas para bancar o bobo e se favorecer é necessário ser um homem educado. Os melhores políticos não são aqueles que estão profundamente fundamentados na matemática ou nas ciências éticas. Os governantes se mantém no caminho da conveniência. Muitos homens têm sido dificultados de colocar sua sorte no mundo por um cultivo inicial de seu senso moral; e se arrependem disto no ócio durante o resto de sua vida. Um homem sagaz disse a meu pai, que ele não enviaria um filho seu para a escola de maneira alguma, pois ao ensiná-lo a dizer a verdade, ele o desqualificaria para ter sua vida no mundo!

É muito pouco necessário adicionar qualquer ilustração para provar que os mais originais e profundos pensadores não são sempre os escritores mais sucedidos e populares. Esta não é uma desvantagem meramente temporária; mas muitos grandes filósofos têm não apenas sido vigiados enquanto viviam, mas esquecidos assim que morreram. O nome de Hobbes é talvez suficiente para explicar esta asserção. Mas eu não desejo ir mais afundo nesta parte do assunto, que é óbvia nela mesma. Eu disse, creio, suficiente para sair o ar de paradoxo que paira sobre o título deste ensaio.


[1] [nota do trad.] Bedlam ou Bethlem Royal Hospital é um hospital um Londres que primeiramente foi uma instituição especializada em doentes mentais, significado este aludido aqui pelo autor.

[2] A saudação de Jake Cade para alguém que tentava louvar-se ao dizer que podia escrever e ler. -- ver Henrique VI - segunda parte.

[3] [nota do trad.] Correggio é como era conhecido o pintor italiano Antônio Allegri (Correggio, c.1489 - Idem, 5 de março de 1534). Foi um pintor da Renascença italiana, contemporâneo de Leonardo e Rafael, com obras nos principais museus de todo o mundo.

[4] [nota do trad.] Uma espécie de jogo de cartas.

[5] [nota do trad.] Raquetes (inglês: Rackets ou Racquets) é um esporte de raquete jogado basicamente nos Estados Unidos, Canadá e Reino Unido. Seu sistema de jogo e regras é semelhante a do squash, sendo freqüentemente chamado de hard rackets para distinguir-se do esporte formalmente nomeado squash rackets.

[6] [nota do trad.] O Quarterly Review foi um jornal literário e político cuja primeira edição foi publicada em Março de 1809 pelo editor John Murray, de Londres, Inglaterra.

[7] [nota do editor] end. Mr. Walker´s, 9, Southampton Buildings, Chacery Lane.

[8] [nota do trad.] Tory é o nome do antigo partido de tendência conservadora do Reino Unido, que reunia a aristocracia britânica.

[9] [nota do editor] Ensaios Políticos, 1819, pp. 51, 335

[10] [nota do trad.] No original learnerder.

[11] [nota do trad.] O verbo usado em inglês é palating. Seria o verbo correspondente a paladar, como este verbo não existe, vão-me escusar os leitores por improvisar.

[12] [nota do editor] Contribuída ao Mourning Chronicle em 1813

[13] [nota do editor] O campo de raquete na rua St. Martin.

[14] [nota do trad.] Aqui ele se refere ao personagem da The Beggar's Opera (Ópera dos Mendigos ou Ópera dos vagabundos) que é uma ópera de balada de 1728 dividida em um prólogo e três atos, com letras de John Gay e músicas de Pupusch.

[15] [nota do editor] "View of the English Stage", 1821, pp. 176-7. A passagem aparece na crítica do escritor à Ópera dos Mendigos.

[16] [nota do trad.] Fives é um esporte inglês que acredita-se deriva das mesmas origens que os outros esportes de raquetes. Em Fives, uma bola é jogada contra as paredes de uma quadra especial, usando mãos enluvadas ou limpas como se fossem raquetes.

[17] [nota do trad.] Parece que aqui se fala de Patrick Cavanagh, que foi um mártir caólico irlandês beatificado pelo Papa João Paulo II em 27 de setembro de 1992.

[18] [nota do editor] O "O Caráter de Burke" foi escrito, em 1807 ("Eloquence of the British Senate", 1807, ii, 206-17.) está reproduzida em "Winterslow, 1850" Ensaio xii.

[19] Peça de William Congreve (Bardsey, 24 de Janeiro de 1670 - Londres, 19 de janeiro de 1729), poeta e dramaturgo neoclássico inglês.

[20] O Grand Turk era o nome dado no Ocidente para o Sultão do Império Otomano, a referência aqui provavelmente diz respeito a esta passagem: Depois das visitas dos funcionários do estado, a porta da Sala do Manto Sagrado enfrente a Enderun seria fechada e a porta de ferro fechada para que a do Harém fosse aberta. Ao convite as esposas do sultão, suas favoritas, suas irmãs e suas filhas, cobrindo suas cabeças com lenços de oração, cada uma visitaria em cerimônia. Elas deixariam a sala depois de receber um lenço especial do sultão. Retirada e traduzida de: http://www.turkishairlines.com/en-INT/skylife/article.aspx?mkl=2097

[21] [nota do editor] Uma alusão ao uso jocoso (há muito tempo tornou-se obsoleto) de fazer alguém um freeman of Highgate (um homem livre de Highhate). [nota do trad.] O Juramento aos Cornos é um falso juramento que foi tradicionalmente dado aos visitantes de vários pubs em Londres no subúrbio de Highgate durante os séculos XVII, XVIII e XIX. O juramento consistia de uma série de declarações lidas por um balconista, confirmando a dedicação de alguém ao deboche e à alegria.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Alfred Schutz – Sobre as realidades múltiplas

Eis um trecho do livro "El Problema de la realidad social” de Alfred Schutz. Que vai das páginas 197 a 206. Vai-me perdoar o leitor especialista em Schutz se eu utilizar alguma transliteração mal-feita. Mas creio ter dado cabo de boa tradução. O título do capítulo já diz sobre o que o texto versa. Bastando lembrar que as notas feitas por mim estão assinaladas como “notas do trad.”. Sem mais por enquanto, boas leituras.

9. Sobre as realidades múltiplas

Em um famoso capítulo de seus Princípios de Psicologia, William James analisa nosso sentido da realidade.[1] Segundo ele, a realidade significa simplesmente uma relação com nossa vida emocional e activa[2]. A origem de toda realidade é subjetiva; tudo o que excita e estimula nosso interesse é real. Chamar uma coisa real, significa que esta se encontra em certa relação com nós. "A palavra 'real', em resumo, é uma orla."[3] Nosso impulso primitivo tende a imediatamente afirmar toda a realidade de tudo concebido, enquanto não seja contradito. Mas existem várias ordens de realidade, talvez um número infinito delas, cada uma das quais têm seu próprio estilo especial e separado de existência. James os chama "subuniversos" e menciona como exemplos o mundo dos sentidos ou das coisas físicas (como realidade eminente), o mundo da ciência, o mundo das relações ideais, o mundo dos "ídolos da tribo", os diversos mundos sobrenaturais da mitologia e da religião, os diversos mundos da opinião individual e dos mundos da mera loucura e divagação.[4] A mente popular concebe todos estes submundos de maneira mais ou menos inconexa, e quando faz referência a um deles esquece no momento suas relações com os demais. Sem embargo[5], todo objeto que pensamos se refere, em última instância, a um destes submundos. "Enquanto se atenta a ele, cada mundo é real à sua maneira; somente que sua realidade desaparece quando deixa de prestar-lhe atenção."[6]

Com essas observações, o gênio de James tocou uma das questões filosóficas mais importantes. Limitando intencionalmente sua indagação ao aspecto psicológico do problema, se absteve de embarcar em uma investigação das muitas implicações que têm. Ainda que fragmentárias, as considerações que faremos a seguir pretendem esboçar um primeiro enfoque de algumas das tais implicações, com o propósito especial de lançar alguma luz sobre a relação entre a realidade do mundo da vida cotidiana e aquele da contemplação teórica, científica.

I. A realidade do mundo da vida cotidiana

1. A atitude natural da vida cotidiana e seu motivo pragmático

Começaremos por analisar o mundo da vida cotidiana que o homem adulto alerta, que actua nele e sobre ele, experimenta entre seus semelhantes, dentro da atitude natural, como uma realidade. "Mundo da vida cotidiana" significará o mundo intersubjetivo que existia muito antes de nosso nascimento, experimentado e interpretado por Outros, nossos precedentes, como um mundo organizado. Agora está dado à nossa experiência e interpretação. Toda interpretação deste mundo se baseia em um acervo de experiências anteriores do mesmo, que funcionam como um esquema de referência na forma de "conhecimento à mão." A este acervo de experiências à mão, pertence nosso conhecimento de que o mundo em que vivemos é um mundo de objetos bem circunscritos, com qualidades definidas, entre os quais nos movemos, que resistem a nós e sobre os quais podemos actuar. Para a atitude natural, o mundo não é, nem tem sido nunca, um mero agregado de manchas coloridas, ruídos incoerentes, centros de calor e frio. A análise filosófica ou psicológica da constituição das nossas experiências pode logo, retrospectivamente, descrever como os elementos deste mundo afetam os nossos sentidos, como os percebemos passivamente de uma maneira indistinta e confusa, como mediante a apercepção[7] activa nossa mente destaca certos caracteres do campo perceptual, os concebendo como coisas bem delineadas, que se destacam sobre um fundo ou horizonte mais ou menos inarticulado. A atitude natural não conhece esses problemas. Para ela, o mundo é, desde o começo, não o mundo privado do indivíduo isolado, mas um mundo intersubjetivo, comum a todos nós, no qual temos um interesse, não teórico, mas eminentemente prático. O mundo da vida cotidiana é o cenário e, também, o objeto das nossas ações e interações. Para levar à cabo os propósitos que buscamos nele, entre nossos semelhantes, temos que o dominar e modificar. Actuamos e obramos não só dentro do mundo mas também sobre ele. Nossos movimentos corporais -- sinestésicos, motores, operativos -- engrenam, por assim dizer, no mundo, modificando ou alterando seus objetos e suas relações mútuas. Por outro lado, estes objetos oferecem resistência aos nossos actos, resistência que devemos superar ou a qual devemos nos render. De tal modo, se pode dizer, corretamente, que um motivo pragmático governa nossa atitude natural em direção ao mundo da vida cotidiana. Neste sentido, o mundo é algo que devemos modificar através de nossas ações ou o que as modifica.

2. As manifestações espontâneas do homem no mundo externo e algumas de suas formas

Mas, o que deve se entender pelo termo "ação" que acabamos de empregar? Como experimenta o homem que está na atitude natural de suas próprias "ações" dentro do mundo e sobre ele? Como é óbvio, as "ações" são manifestações da vida espontânea do homem. Mas este não experimenta todas as tais manifestações como ações, nem tampouco todas suas ações como provocando alterações no mundo externo. Lamentavelmente, as diferentes formas de todas estas experiências não são distinguidas com claridade no pensamento filosófico atual, não existe nenhuma terminologia de aceitação geral.

Em vão buscaríamos ajuda no comportamentismo e sua distinção entre conduta manifesta e conduta latente, categorias as quais se agrega às vezes uma terceira, a de conduta submanifesta, com o fim de caracterizar a manifestação de espontaneidade nos atos da linguagem. Não é nosso objetivo criticar aqui a falácia básica do ponto de vista comportamentista ou discutir o caráter insatisfatório e inconsistente da tricotomia que acabamos de mencionar. Para nossos fins basta mostrar que a interpretação comportamentista da espontaneidade não pode contribuir em nada à questão que nos ocupa: a de saber como são experimentadas as diferentes formas de espontaneidade pela mente em qual se originam. Na melhor das hipóteses, o comportamentismo é um esquema de referência útil para quem observa a conduta de outras pessoas. Ele, e só ele, poderia estar interessado em examinar as atividades dos homens ou dos animais de acordo com um esquema relacional de referência como o do estímulo-resposta, ou organismo-ambiente, e só desde seu ponto de vista são acessíveis estas categorias. Nosso problema, sem embargo, não é o que sucede ao homem como unidade psicofisiológica, mas a atitude que adota em direção a esses eventos; em resumo, o sentido subjetivo que o homem outorga a certas experiências de sua própria vida espontânea. Condutas que para o observador parecem objetivamente as mesmas, podem ter para o sujeito sentidos muito distintos, ou não os ter em absoluto. Como já foi mostrado,[8] o sentido não é uma qualidade inerente à certas experiências que surgem dentro do nosso fluxo de consciência, mas o resultado de uma interpretação de uma experiência passada contemplada desde o Agora com uma atitude reflexiva. Enquanto vivo nos meus actos, dirigidos aos objetos e tais actos, estes não possuem nenhum sentido. Apresentam-se providos de sentido se os capto como experiências circunscritas do passado; portanto, na retrospecção. A saber, que somente as experiências que podem ser recontadas para além de sua actualidade e que podem ser questionadas em relação à sua constituição são subjetivamente providas de sentido.

Mas se foi aceita essa caracterização do sentido, há alguma experiência da minha vida espontânea que não seja subjetivamente provida de sentido? Em nossa opinião, a resposta é afirmativa. Existem os meros reflexos fisiológicos, como o reflexo rotuliano, a contração da pupila, a tremulação, o rubor, assim como certas reações passivas provocadas pelo que Leibniz chama: a onda do indiscernível e pequenas percepções confusas; e, ademais, minha inclinação, minha expressão facial, meu ânimo, as manifestações da minha vida espontânea, que tem como resultado certas características da minha escrita, sujeitas a interpretação grafológica, etc. Todas estas formas de espontaneidade involuntária são experimentadas enquanto ocorrem, mas sem deixar nenhum rastro na memória; como experiências são -- empregando uma expressão de Leibniz -- muito adequadas para este problema em particular; percebidas, mas não apercebidas. Instáveis e inseparáveis das experiências circundantes, não podem ser delineadas nem recordadas. Pertencem à categoria das experiências essencialmente actuais, ou seja, que existem somente na actualidade de ser experimentadas e não podem ser captadas mediante uma atitude reflexiva.[9] As experiências subjetivamente providas de sentido que surgem da nossa vida espontânea receberão o nome de comportamento (conduct). (Evitamos o termo "conduta" [behavior] porque no uso atual inclui também manifestações espontâneas não providas de sentido, como os reflexos.) Tal como será utilizado aqui, o termo "comportamento" se refere a todo tipo de experiências espontâneas subjetivamente providas de sentido, sejam as da vida interior ou as que se inserem no mundo externo. Se nos é permitido empregar termos objetivos numa descrição de experiências subjetivas -- e depois do esclarecimento anterior já não há perigo de mal-entendido --, podemos dizer que o comportamento pode ser manifesto ou latente. O primeiro será chamado mero fazer, e o segundo mero pensar. Sem embargo, o termo "comportamento", tal como o utilizamos aqui, não implica nenhuma referência à intenção. Todo tipo de atividades chamadas automáticas da vida interior ou exterior -- por exemplo, atividades habituais, tradicionais, afetivas -- formam parte desta classe, a qual Leibniz denominou "classe da conduta empírica."

O comportamento planejado de antemão, quer dizer, baseado num projeto pré-concebido, será chamado ação, independentemente de que seja manifesto ou latente. Enquanto a este último, deve se distinguir se tem-se ou não a intenção de cumprir o projeto, de levá-lo à cabo, de criar um estado de coisas projetado. Tal intenção transforma o mero pré-meditar, em um objetivo e o projeto num propósito. Se falta a intenção de realização, a ação latente projetada não passa de ser uma fantasia, um sonho; se subsiste, podemos falar de uma ação dotada de propósito ou de uma efectuação. Um exemplo de ação latente que constitue uma efectuação é o processo de pensamento projetado como o intento de resolver mentalmente um problema científico.

Em relação às chamadas ações manifestas, ou seja, ações que se inserem no mundo externo mediante movimentos corporais, não é necessário diferenciar entre as que estão e as que não estão acompanhadas da intenção de as realizar. Toda ação manifesta é uma efectuação, segundo o significado que a temos dado. Com a finalidade de distinguir as efectuações do mero pensar (latente) daquelas que exigem movimento corporais (manifestas), chamaremos a estas últimas, execuções.

Uma execução é, por conseguinte, uma ação no mundo externo baseada em um projeto e caracterizada pela intenção de produzir um estado de coisas projetado mediante movimentos corporais. Entre todas as formas descritas de espontaneidade, a execução é a mais importante para constituir a realidade do mundo da vida cotidiana. Como veremos em breve, o si-mesmo alerta integra em seu executar, e por seu intermédio, seu presente, passado e futuro em uma dimensão temporal específica; se concretiza como totalidade em seus actos executivos, e por meio deles se comunica com Outros e organiza as diferentes perspectivas espaciais do mundo da vida cotidiana. Mas antes de abordar estes problemas, devemos explicar o que significa a expressão "si-mesmo alerta" que acabamos de empregar.

3. As tensões da consciência e a atenção à vida

Na filosofia de Bergson, um dos pontos centrais é sua teoria segundo a qual nossa vida consciente mostra um número indefinido de planos diferentes, que vão desde o plano da ação, em um extremo, ao plano do sonho, em outro. Cada um destes planos se caracteriza por uma tensão específica da consciência, de onde o plano da ação mostra a maior tensão e o do sonho a menor. De acordo com Bergson, estes diferentes graus de tensão da nossa consciência são funções de nossos variados interesses na vida; a ação representa nosso máximo interesse, enquanto a enfrentar a realidade e satisfazer seus requisitos, e o sonho a falta completa de interesse. A attention à la vie -- a atenção à vida -- é, pois, o princípio regulador básico de nossa vida consciente. Define o âmbito de nosso mundo que é importante para nós; articula nossa corrente de pensamento em fluxo contínuo; determina o alcance e a função de nossa memória; nos faz viver -- em nossa linguagem -- nossas experiências presentes, dirigidas aos seus objetos, ou nos voltarmos em uma atitude reflexiva em direção das nossas experiências passadas, em busca de seu significado.[10]

Com a expressão estado de alerta queremos indicar um plano da consciência de elevadíssima tensão, que se origina em uma atitude de plena atenção à vida e seus requisitos. Só o si-mesmo efectuante e, em especial, o executante, está plenamente interessado na vida e, por fim, alerta. Vive em seus atos e sua atenção está dirigida exclusivamente a pôr em prática seu projeto, a executar seu plano. Esta atenção é ativa, não passiva. A atenção passiva é o oposto do estado de alerta. Na atenção passiva experimento, por exemplo, a onda de pequenas percepções indiscerníveis que são, como antes dissemos, experiências essencialmente actuais, e não manifestações de espontaneidade providas de sentido. A espontaneidade provida de sentido pode ser definida, segundo Leibniz, como: o esforço que tende a chegar a percepções novas. Em sua forma inferior, conduz à delimitação de certas percepções as transformando em apercepção; em sua forma superior, conduz a levar à cabo execuções que se inserem no mundo externo e o modificam. O conceito de estado de alerta revela o ponto de partida para uma interpretação pragmática legítima[11] da nossa vida cognoscitiva. O estado de alerta de si-mesmo executante perfila o setor do mundo que tem significação pragmática, e estas significações determinam a forma e o conteúdo de nossa corrente de pensamento: a forma, porque regula a tensão de nossa memória e, com ela, o alcance de nossas experiências passadas recordadas e de nossas experiências futuras antecipadas; o conteúdo, pois todas essas experiências sofrem modificações específicas de atenção pelo projeto pré-concebido e sua colocação em prática. Isto nos leva de modo imediato a uma análise da dimensão temporal em que o si-mesmo executante experimenta seus próprios atos.

4. As perspectivas temporais do "ego agens" e sua unificação

Começamos por estabelecer uma distinção referida às ações em geral, tanto latentes como manifestas, entre a ação como processo em curso, como actuação em movimento (actio), por um lado, e a ação como acto efectuado, como a coisa feita (actum), por outro. Enquanto vivo em minha actuação, em movimento, estou dirigido em direção do estado de coisas que será criado por esta actuação. Mas então não tenho em vista minhas experiências deste processo de actuação em curso. Para fazê-lo, tenho que voltar-me até minha actuação adotando uma atitude reflexiva. Como o formulou uma vez Dewey, devo deter-me e pensar. Se adoto esta atitude reflexiva, o que posso captar não é, sem embargo, minha actuação em curso. O que posso unicamente captar é meu acto efectuado (minha actuação passada) ou, se minha actuação continua, todavia, enquanto dirijo os olhos para trás, as fases iniciais efectuadas (minha actuação presente). Enquanto vivia em meu actuar em curso, este era um elemento de meu presente vívido; agora esse presente foi convertido em passado, e a experiência vívida de meu actuar em movimento fora substituída por minha lembrança de ter actuado ou a memória de ter estado actuando. Visto desde o presente atual, no qual adoto a atitude reflexiva, minha actuação passada ou pretérita perfeita só é concebível em termos de actos efectuados por mim.

Assim, posso viver no processo em curso de minha actuação, dirigida ao seu objeto, e experimentar minha actuação no tempo presente (modo presenti), ou bem posso sair, por assim dizer, do fluxo em curso e contemplar com uma visão reflexiva os actos realizados nos processos prévios de actuação no tempo passado ou pretérito perfeito (modo praeterito). Como se disse em um parágrafo anterior, isto não significa que somente tenham sentido os actos efectuados, mas não as ações em curso. Devemos ter presente que, por definição, a ação se baseia sempre em um projeto pré-concebido, e esta referência ao projeto precedente é o que dota de sentido o actuar e o acto. Mas, qual é a estrutura temporal de uma ação projetada? Quando projeto minha ação, ensaio, como disse Dewey, minha ação futura na imaginação.[12] Isto significa que antecipo o resultado de minha ação. Contemplo em minha imaginação esta ação antecipada como a coisa que deverá se fazer, o acto que deverá ser efectuado por mim. Ao projetar, contemplo meu acto no tempo futuro perfeito, o penso modo futuri exacti. Mas estas antecipações são vazias e podem resultar ou não cumpridas pela ação, uma vez efectuada. O acto passado ou pretérito perfeito, no entanto, não mostra nenhuma de tais antecipações vazias. O que no projeto era vazio foi cumprido ou não. Nada fica sem definição, sem decisão. Posso recordar as antecipações abertas envolvidas no projetar do acto, e até as protensões[13] que acompanham meu viver no processo em curso de minha actuação. Mas agora, na retrospecção, as recordo em termos de minhas antecipações passadas, que foram cumpridas ou não. Por fim, somente o acto efectuado, nunca a actuação em curso, pode resultar um êxito ou um fracasso.

O que foi dito é válido para todo tipo de ação; mas agora devemos nos voltar à estrutura peculiar da execução como efectuação corporal no mundo externo. Em suas investigações, Bergson, e também Husserl, destacaram a importância de nossos movimentos corporais para a constituição do mundo externo e sua perspectiva temporal. Experimentamos nossos movimentos corporais simultaneamente em dois planos diferentes: na medida em que são movimentos no mundo externo, os contemplamos como eventos que têm lugar no espaço e no tempo, medidos em termos do caminho percorrido; na medida em que são experimentados conjuntamente desde dentro como mudanças que se produzem, como manifestações de nossa espontaneidade pertencentes ao nosso fluxo de consciência, compartilham nosso tempo interior ou durée. O que acontece no mundo externo pertence à mesma dimensão temporal a qual têm lugar os eventos da natureza inanimada; pode ser registrado mediante mecanismos apropriados e medido com nossos cronômetros. É o tempo espacializado, homogêneo, forma universal do tempo objetivo cósmico. Por outro lado, está o tempo interior ou durée, dentro do qual nossas experiências actuais se conectam com o passado mediante recordações e retenções, e com o futuro mediante protensões e previsões. Em nossos movimentos corporais, e mediante eles, efectuamos a transição de nossa durée ao tempo espacial ou cósmico, e nossas ações executivas participam de ambos. Na simultaneidade experimentamos a ação executiva como uma série de eventos no tempo exterior e no interior, unificando ambas dimensões em um só fluxo que será denominado presente vívido. Por conseguinte, o presente vívido se origina numa interseção da durée e o tempo cósmico.

Ao viver no presente vívido em seus actos executivos em curso, dirigido aos objetos e objetivos que se querem alcançar, o si-mesmo executante se experimenta como originador das ações em curso e, por outro lado, como um si-mesmo total indiviso. Experimenta seus movimentos corporais desde dentro; vive nas experiências correlacionadas essencialmente actuais que são inacessíveis à recordação e à reflexão; seu mundo é um mundo de antecipações abertas. O si-mesmo executante, e somente o si-mesmo executante, experimenta todo este modo presenti e, ao se experimentar como o autor desta execução em curso, se realiza como unidade.

Mas se o si-mesmo, em uma atitude reflexiva, se volta aos actos executivos efectuados e os contempla modo praeterito esta unidade se rompe. O si-mesmo que efectuou os actos passados já não é o si-mesmo total indiviso, senão um si-mesmo parcial, aquele que efectua este acto particular que se refere a um sistema de actos correlacionados, ao qual pertence. Este si-mesmo parcial é simplesmente o que adota um papel ou -- utilizando, com todas as reservas necessárias, um termo bastante equívoco que James e Mead introduziram na literatura sobre o tema -- um Mim (Me).

Não podemos entrar aqui em um exame detalhado das difíceis implicações desta questão, o qual exigiria expor e criticar o intento de abordar estes problemas, bastante incompleto e inconsistente, de que tem o autor G. H. Mead. Limitar-nos-emos a assinalar a distinção que Mead estabelece entre a totalidade do si-mesmo actuante, ao que denomina o "Eu", e os si-mesmos parciais dos actos efectuados, os que adotam papéis, aos quais chama os "Mins". Até agora, a tese apresentada neste artigo coincide com a análise realizada por Mead. Também há acordo com Mead quando disse que o "Eu" não entra na experiência senão depois de que já tenha levado à cabo o acto, aparecendo assim experiencialmente como parte do Mim, ou seja, que o Mim aparece em nossa experiência na memória.[14]

Para nossos fins, a mera consideração de que as experiências interiores de nossos movimentos corporais, as experiências essencialmente actuais e as antecipações abertas não são apreendidas pela atitude reflexiva mostra com suficiente clareza que o si-mesmo passado nunca pode ser senão um aspecto parcial do si-mesmo total que se concreciona na experiência de sua execução em curso.

Devemos adicionar algo relacionado com a distinção entre execução (manifesta) e efectuação (não manifesta). No caso de uma mera efectuação, como o intento de resolver mentalmente um problema matemático, posso anular todo o processo das operações mentais e voltar a começar desde o princípio, se minhas previsões não se cumprem no resultado e este não me satisfaz. Nada mudou no mundo externo, não haverá nenhum vestígio do processo anulado. Neste sentido, as ações somente mentais são revogáveis. A execução, no entanto, é irrevogável. Minha obra modificara o mundo externo. Na melhor das hipóteses, posso restaurar a situação inicial com medidas opostas às anteriores, mas não posso desfazer o que está feito. Esta é a razão pela qual, desde o ponto de vista legal e moral, sou responsável pelas minhas ações, mas não de meus pensamentos. Também por isto tenho a liberdade de escolher entre várias possibilidades somente quanto uma obra mentalmente projetada, antes de cumprida no mundo externo ou, ao menos, enquanto cumprida no presente vívido e está, todavia, até o fim, sujeita a modificações. Com respeito ao passado, não há possibilidade de escolha. Uma vez concretizada a minha obra, ou ao menos parte dela, está escolhido de uma vez por todas o que está feito e devo agora encarar as conseqüências. Não posso escolher o que quisera ter feito.

Até agora nossa análise tem-se referido à estrutura temporal da ação -- e como corolário, da estrutura temporal do si-mesmo -- dentro do fluxo de consciência isolado do indivíduo, como se o homem alerta na atitude natural pudesse ser concebido como separado de seus semelhantes. Esta abstração fictícia foi feita, naturalmente, com o único fim de aclarar a exposição dos problemas envolvidos. Devemos passar agora à estrutura social do mundo do executar.


[1] Principles of Psychology, vol. II, cap. XXI, pags. 283-322

[2] N. do trad. - Aqui traduzirei toda a sorte de derivações do vocábulo acto, com o c. Não só o ato tem aquele sentido de atuação, de agente movente, mas também de actualização, no sentido do acto Aristotélico, que aqui se contrapõe à latente. Eis pois, a modo de resgate de um significado perdido à muito, que farei tal tipo de ajuste na tradução.

[3] Ibid., pag. 320.

[4] Ibid., pag. 291 e segs.

[5] N. do trad. - Sem embargo, conquanto utilizado por Machado de Assis em sua obra, já não é mais utilizado, ele possui o sentido de: Não obstante; apesar de. Mas como creio que a expressão tem um sentido próprio particular que difere dessas outras aqui apresentadas, não a trocarei.

[6] Ibid., pag. 293.

[7] N. do trad. - a partir daqui uso apercepção, termo originário espanhol com equivalente em português, com o sentido de intuição. Como tradução de apercepção o uso de intuição encontrará dificuldades, pois mais tarde intuición. A diferença é que apercepção está relacionada com a percepção consciente de algo, enquanto intuição com a percepção imediata e sem necessidade de raciocínios.

[8] Alfred Schutz, Der sinnhafte Aufbau der sozialen, Welt,& Viena, 2ª ed , 1960, págs. 29-43, 72-93.

[9] Em relação a "atitude reflexiva" cf. Marvin Farber, The Foundation of Phenomenology, Cambridge, 1943, p. 523 e segs., e também 378 e segs.; cf. também, Dorion Cairns "An Approach to Phenomenology", em Marvin Farber, ed, Philosophical Essays in Memory of Edmund Husserl, Cambridge, 1940, p. 8 e segs. O conceito de "esperiências essencialmente actuais" não se encontra, sem embargo, nos escritos de Husserl, quem opinava que em princípio todo acto pode ser captado na reflexão.

[10] Ainda que esta exposição não se conforme estritamente à terminologia de Berg­son, esperamos ter transmitido de modo adequado o esencial de seu pen­samento. Oferecemos uma seleção de algumas passagens dos escritos de Bergson que são importantes para o problema que nos ocupa: Es sai sur les données immédiates de la conscience,*** Paris, 1889, pp. 20 e segs. , 94-106; Matière et Mémoire, Paris, 1897, pp. 189-95, 224-33; «Le rêve» (1901), en L'Energie spirituelle, Paris, 1919, pp. 108-11; «L'effort intellectuel» (1902), em ibid., pp. 164-71; «Introduction à la métaphysique» (1903), em La Pensée et le Mouvant, Paris, 1934, pp. 233-38; «Le souvenir du présent et la fausse re­connaissance» (1908), L'Energie spirituelle, págs. 129-37; «La conscience et la vie»(1911) em ibid., pp. 15-18; «La perception du changement (1911), em La Pensée et le Mouvant, pp. 171-75; 190-93; «Fantôes de vivant» e «Recherche psychique» (1913), em L'Energie spirituelle, pp. 80-84; «De la position des problèmes» (1922), em La Pensée et le Mouvant, p. 91 e segs.

[11] Com muito poucas exceções, o pragmatismo vulgar não aborda os problemas da constituição da vida consciente implicados na noção de um ego agens ou um homo faber, da qual a maioria dos autores partem como algo dado. Por conseguinte, o pragmatismo só é no fundamental uma descrição de sentido comum da atitude do homem no mundo do executar cotidiano, mas não uma filosofia que investigue as pressuposições de tal situação.

[12] Human Nature and Conduct,& Nueva York, 1922, parte 3-, secc. III, «The Nature of Deliberation».

[13] N. do trad. - protensão vem de protender: estender para diante.

[14] Véase George H. Mead, Mind, Self and Society, Chicago, 1934, págs. 173-75, 196-98, 203; «The Genesis of the Self», reimpreso en The Philosophy of the Present, Chicago, 1932, págs. 176-95, esp. págs. 184 y sigs.; «What Social Objects Must Psychology Presuppose?», Journal of Philosophy, vol. viu, 1910, págs. 174-80; «The Social Self», Journal of Philosophy, vol. x, 1913, págs. 374-80. Véase también el excelente libro sobre Mead de Alfred Stafford Clay­ton, Emergent Mind and Education, Nueva York, 1943, págs. 136-41, esp. pág. 137. Sin duda, es un mérito de Mead haber comprendido las relaciones entre acto, sí-mismo, memoria, tiempo y realidad. Por supuesto, la posición que se expone en este artículo no es conciliable con la teoria de Mead sobre el origen social dei sí-mismo ni con su conductismo (modificado), que lo lleva a interpretar todos los fenómenos mencionados en términos de estímulo y respuesta. Hay mucha más verdad en el famoso capítulo x de William James, Principles of Psychology, en el que no solo puede hallarse la distinción entre el Mi (Me) u el yo (I), sino también la referencia a los movimientos cor­porales, la memoria y el sentido del tiempo.

domingo, 5 de setembro de 2010

Leo Strauss - O que é Educação Liberal ?

por Leo Strauss

tradução: Leandro Diniz

fonte: http://www.ditext.com/strauss/liberal.html

Leo Strauss nasceu na Alemanha em 1899. Desde a vinda para os EUA em 1938 ele tem sido professor de ciência política e filosofia na New School for Social Research e professor de ciência política da Universidade de Chicago. Em 1954-55 ele estava como professor visitante de filosofia e ciência política na Hebrew University de Jerusalém. Entre os livros que o professor Strauss escreveu estão A Ciência Política de Hobbes, Direito Natural e História e Reflexões sobre Maquiavel.

Vocês adquiriram uma educação liberal. Eu vos congratulo pelo vosso feito. Se eu fosse intitulado para fazê-lo, eu vos elogiaria pelo vosso feito. Mas eu estaria contrário à obrigação a qual me impus se eu não complementasse minhas congratulações com um aviso. A educação liberal que vocês adquiriram evitará o perigo de que o aviso seja entendido como um conselho de desespero.

A educação liberal é uma educação em cultura ou direcionada à cultura. O produto final de uma educação liberal é um ser humano culto. "Cultura" (cultura) significava primariamente agricultura: o cultivo do solo e seus produtos, tomar conta do solo, melhorar o solo de acordo com sua natureza. Principalmente nos dias de hoje, "cultura" significa, por analogia, o cultivo da mente, os cuidados e melhorias das faculdades inatas da mente de acordo com a natureza da mente. Assim como o solo necessita de cultivadores do solo, a mente necessita de professores. Mas não é tão fácil encontrar professores como o é encontrar fazendeiros. Os próprios professores são, eles mesmos, alunos e devem ser alunos. Mas não pode haver uma regressão infinita: ultimamente devem existir professores que não são, por sua vez, alunos. Aqueles professores que não são, por sua vez, alunos, são mentes brilhantes ou, para evitar qualquer ambigüidade em um assunto de tal importância, as mentes mais brilhantes. Tais homens são extremamente raros. Nós não os encontramos, nenhum deles, em uma sala de aula. É até um pouco de boa sorte se existir um único que esteja vivo na época de qualquer pessoa. Para todos os propósitos práticos, alunos, de quaisquer graus de proficiência, têm acesso aos professores que não são, por sua vez, alunos -- às grandes mentes -- somente através dos grandes livros. A educação liberal consistirá, então, em estudar com cuidado próprio os grandes livros que as grandes mentes deixaram pra trás -- um estudo no qual os alunos mais experientes auxiliam os menos experientes, incluindo os iniciantes.

Esta não é uma tarefa fácil, como pareceria se considerássemos a fórmula que eu acabei de mencionar. Esta fórmula requer um longo comentário. Muitas vidas foram gastas e ainda podem ser gastas na escrita de tais comentários. Por exemplo, o que quer dizer o lembrete de que os grandes livros devem ser estudados "com cuidado próprio"? Neste momento eu só mencionei uma dificuldade que é óbvia para todos entre vocês: nem todas as grandes mentes nos falam as mesmas coisas em relação aos temas mais importantes; a comunidade das grandes mentes é separada pela discórdia e mesmo pelos vários tipos de discórdia. Quaisquer conseqüências mais sérias que isso possa desencadear, certamente desencadeia a conseqüência de que a educação liberal não pode, simplesmente, ser uma doutrinação. Eu mencionei outra dificuldade. "A educação liberal é uma educação em cultura." Em qual cultura? Nossa resposta é: cultura no sentido da tradição ocidental. Ainda, a tradição ocidental é apenas uma entre muitas culturas. Ao limitarmo-nos à cultura ocidental, não condenamos a educação liberal a um tipo de provincianismo, e não é o provincianismo incompatível com o liberalismo, a generosidade, a mente aberta , ou a educação liberal? Nossa noção de educação liberal não parece se encaixar nessa época que está alerta para o fato de que não existe a cultura da mente humana, mas uma variedade de culturas. Obviamente, se "cultura" está sujeita a ser usada no plural, então, não é a mesma coisa que "cultura", que é um singulare tantum, ou seja, que pode somente ser usado no singular. "Cultura" não é mais, como dizem as pessoas, uma coisa absoluta, mas tornou-se relativa. Não é fácil dizer o que significa a cultura sujeita de ser usada no plural. Como uma conseqüência dessa obscuridade, as pessoas sugeriram, explicita ou implicitamente, que "cultura" é qualquer padrão de conduta comum de qualquer grupo humano. Por isso, não hesitamos em falar de cultura do subúrbio ou as culturas das gangues juvenis, tanto as não delinqüentes quanto as delinqüentes. Em outras palavras, cada ser humano que não estiver em um asilo para lunáticos é um ser humano culto, pois ele participa de uma cultura. Nas fronteiras das pesquisas surge a questão de se não existem também culturas dos reclusos nos asilos para lunáticos. Se contrastarmos o uso atual de "cultura" com o seu significado original, teríamos algo como se alguém dissesse que o cultivo de um jardim pudesse consistir em serem espalhadas latas vazias de tinta e garrafas de whisky e papéis usados de vários tipos jogados ao redor, aleatoriamente no jardim. Alcançado este nível, percebemos que perdemos, de alguma maneira, nosso rumo.Deixe-nos, então, fazer um novo começo ao levantar a questão: o que pode a educação liberal significar aqui e agora?

A educação liberal é uma educação literária de um certo tipo: algum tipo de educação em letras ou através delas. Não há necessidade de levantar o caso da alfabetização; qualquer votante sabe que a democracia moderna permanece ou cai por conta da alfabetização. Para entender essa necessidade precisamos refletir sobre a democracia moderna. O que é a democracia moderna? Uma vez foi dito que a democracia é o regime que permanece ou cai por conta da virtude; uma democracia é um regime no qual todos ou a maioria dos adultos são homens de virtude, e desde que a virtude parece requerer a sabedoria, um regime no qual todos ou a maior parte dos adultos são virtuosos e sábios, ou a sociedade na qual todos ou a maior parte dos adultos desenvolveram sua razão a um alto grau, seja, a sociedade racional. Democracia, resumindo, significa ser uma aristocracia que ampliou-se em uma aristocracia universal. Antes da emergência da democracia moderna algumas dúvidas sentiam-se sobre se a democracia assim entendida seria possível. Como uma das duas grandes mentes entre os teóricos da democracia colocou: "se existisse um povo consistindo de deuses, ele governaria a si mesmo democraticamente. Um governo de tal perfeição não é apropriado para seres humanos." Esta permanente e baixa voz tornou-se, por agora, um auto-falante poderoso. Existe toda uma ciência -- a ciência que eu, entre milhares, creio ensinar: a ciência política --, que, para assim dizer, não possui outro tema que o contraste entre a acepção original de democracia, ou o que alguém pode chamar o ideal de democracia, e a democracia como se apresenta. De acordo com uma visão extremada, que é a predominante na profissão, o ideal de democracia era uma pura ilusão e que a única coisa que interessa é o comportamento das democracias e o comportamento dos homens nas democracias. A democracia moderna, tão longe de ser uma aristocracia universal, seria um governo do povo se não fosse pelo fato de que o povo não pode governar, mas é governado pelas elites, ou seja, grupos de homens que, por razões quaisquer, estão no topo ou têm uma grande chance de chegar no topo; uma das virtudes mais importantes requeridas para o suave funcionado da democracia, tanto quanto o povo está interessado, é dito ser a indiferença eleitoral, ou seja, falta de espírito público; não, de fato, o sal da terra, mas o sal da democracia moderna são aqueles cidadãos que não lêem mais nada que a página de esportes e a sessão de quadrinhos. Democracia não é, então, de fato, o governo do povo, mas a cultura de massa. A cultura de massa é uma cultura na qual pode ser apropriada pelas capacidades mais mesquinhas sem qualquer esforço intelectual ou moral e a um preço monetário baixo. Mas mesmo uma cultura de massa, e precisamente uma cultura de massa, requer um constante suprimento do que são chamadas: novas idéias, que são produtos do que são chamadas: as mentes criativas; mesmo comerciais musicais perdem seu apelo se não variam de tempo em tempo. Mas a democracia, mesmo que seja considerada a casca grossa que protege a macia cultura de massas, requer, a longo prazo, qualidades de um tipo inteiramente diferente: qualidade de dedicação, de concentração, de largura e profundidade. Então, entendemos mais facilmente o que a educação liberal significa aqui e agora. A educação liberal é um antídoto da cultura de massa, aos efeitos corrosivos da cultura de massa, à sua tendência interna de produzir nada mais do que "especialistas sem espírito ou visão e voluptuosos sem coração." A educação liberal é a escada pela qual tentamos subir da democracia de massa à democracia como significava originalmente. A educação liberal é o esforço necessário para fundar uma aristocracia dentro da sociedade da democracia de massa. A educação liberal faz lembrar aqueles membros da democracia de massa, que têm ouvidos a escutar, da grandeza humana.

Alguém pode dizer que esta noção de educação liberal é meramente política, que dogmaticamente assume a bondade da democracia moderna. Não podemos virar as costas a sociedade moderna? Não podemos retornar para a natureza, a vida das tribos analfabetas? Não somos esmagados, nauseados e degradados pela massa de material impresso, o cemitério de tantas florestas lindas e magistrais? Não é suficiente dizer que isto é mero romantismo, que não podemos hoje retornar para a natureza: não podem as gerações vindouras, depois de um cataclismo causado pelo homem, seres compelidas a viver em tribos analfabetas? Não serão nossos pensamentos sobre as guerras termo-nucleares serem afetados por tais perspectivas? Certo é, que os horrores da cultura de massa (que inclui passeios guiados na natureza inteira) apresentam inteligível a ânsia para um retorno à natureza. Uma sociedade iletrada no seu melhor é uma sociedade governada por um ancestral idoso personalizado que traça aos fundadores originais, deus ou filhos de deuses ou alunos de deuses; desde que não existem letras em tais sociedades, os herdeiros mais recentes não podem estar em contato direto com os fundadores originais; eles não podem saber se os pais ou avós não desviaram do que os fundadores originais significaram; por isso, uma sociedade iletrada não pode agir consistentemente sobre seus princípios de que o melhor é o mais velho. Somente as letras que vieram dos fundadores podem tornar possível para os fundadores falar diretamente aos seus últimos herdeiros. É, então, auto-contraditório desejar retornar ao analfabetismo. Estamos compelidos a viver com livros. Mas a vida é muito curta para viver com qualquer livro, mas apenas com os maiores. A este respeito, tanto quanto a alguns outros, fazemos bem se tomamos como nosso modelo aquele entre as grandes mentes, que por conta de seu bom senso são as mediadoras entre nós e as melhores mentes. Sócrates nunca escreveu um livro mas ele leu livros. Deixe-me citar uma declaração de Sócrates que diz quase tudo que há para ser dito sobre nosso assunto, com a nobre simplicidade e a tranqüila grandeza dos anciãos. "Assim como outros são satisfeitos por um bom cavalo ou cão ou pássaro, eu mesmo sou satisfeito a um grau ainda mais alto por bons amigos... E o tesouro dos antigos homens sábios que o deixaram para trás ao escrevê-los em livros, eu os abro e vou através deles junto com meus amigos, e se vemos algo bom, nós o pegamos e consideramos isso um grande ganho se nos tornamos úteis uns para os outros." O homem que relatou essa fala, adiciona um lembrete: "Quando eu ouço isto, parece a mim tanto que Sócrates foi abençoado quanto que ele estava liderando aqueles que ouviam a ele à uma perfeita nobreza." Este relato é imperfeito desde que nada nos conta do que fez Sócrates a respeito destas passagens nos livros dos antigos homens sábios de que ele não sabia nem se eram homens bons. De outro relato sabemos que Eurípides deu uma vez a Sócrates o escrito de Heráclito e, então, o perguntou sua opinião sobre o escrito. Sócrates disse: "O que eu entendi é grande e nobre; creio que é também verdade do que eu não entendi; mas alguém precisa, certamente, para entender este escrito, algum tipo especial de mergulho."

Educação para a perfeita nobreza, para a excelência humana, a educação liberal consiste em lembrar ao estudante da excelência humana, da grandeza humana. De qual maneira, por quais meios a educação liberal nos lembra da grandeza humana? Não podemos pensar suficientemente alto o que a educação liberal tende a significar. Nós enfrentamos a sugestão de Platão de que a educação no sentido mais alto é filosofia. A filosofia é a busca pela sabedoria ou a busca pelo conhecimento concernente às mais importantes, as mais altas, ou as mais compreensivas das coisas; tal conhecimento, ele sugere, é a virtude e a felicidade. Mas a sabedoria é inacessível aos homens e, por isso, a virtude e a felicidade serão sempre imperfeitas. A despeito disso, o filósofo, quem, como tal, não simplesmente sábio, é declarado ser o único rei verdadeiro; é declarado possuir todas as excelências as quais a mente do homem é capaz, no grau máximo. Disto devemos delinear a conclusão que nós não podemos ser filósofos -- que não podemos adquirir a maior forma de educação. Não devemos ser enganados pelo fato de que conhecemos pessoas que dizem que são filósofos. Pois estas pessoas empregam uma expressão vazia que é talvez necessitada por conveniência administrativa. Freqüentemente querem dizer, meramente, que eles são membros dos departamentos de filosofia. E é absurdo esperar que membros dos departamentos de filosofia sejam filósofos; como é esperar que membros dos departamentos de arte sejam artistas. Não podemos ser filósofos, mas podemos amar a filosofia; podemos tentar ser filósofos. Este filosofar consiste, em qualquer nível e em primeiro lugar, em ouvir às conversações entre os grandes filósofos ou, mais genericamente e mais cautelosamente, entre as grandes mentes, e, a partir daí, em estudar os grandes livros. As melhores mentes a quem devemos ouvir são, de qualquer maneira, exclusivamente as grandes mentes do Ocidente. É meramente uma necessidade infortuna que nos previne de ouvir as grandes mentes da Índia e da China: não entendemos a sua linguagem, e não podemos aprender todas as línguas. Para repetir, a educação liberal consiste em ouvir à conversação entre as grandes mentes. Mas aqui somos confrontados com a dificuldade gigantesca de que esta conversação não pode acontecer sem a nossa ajuda -- que, de fato, nós devemos ocasionar esta conversação. As grandes mentes pronunciam monólogos. [cf. com a declaração de Croce de que para ler um filósofo você há de saber contra quem ele está polemizando] Devemos transformar seus monólogos em um diálogo, seu "lado a lado" em "ajuntado." As maiores mentes proferem monólogos mesmo quando escrevem diálogos. Quando olhamos os diálogos platônicos, observamos que nunca existe um diálogo entre mentes de alta ordem: todos os diálogos platônicos são diálogos entre um homem superior e homens inferiores a ele. Platão, aparentemente, sentiu que alguém não pode escrever um diálogo entre dois homens de alta ordem. Então, devemos fazer algo que as grandes mentes foram incapazes de fazer. Deixe-nos encarar esta dificuldade -- uma dificuldade tão grande que parece condenar a educação liberal como uma absurdidade. Desde que as grandes mentes contradizem a si mesmas em relação aos assuntos mais importantes, elas nos compelem a julgar seus monólogos; não podemos aceitar em confiança o que qualquer um deles diz. Por outro lado, não podemos mais que notar que não existem juízes competentes. Este estado de coisas é ocultado de nós por um número de fáceis ilusões. Acreditamos, de alguma maneira, que nosso ponto de vista é superior, maior do que aqueles das grandes mentes -- tanto por que nosso ponto de vista é aquele de nosso tempo, e nosso tempo sendo mais tardio do que o tempo das grandes mentes, pode ser presumido ser superior ao seus tempos; ou tanto por que cremos que cada uma das grandes mentes estava certa do seu ponto de vista, mas não, como ele afirma, simplesmente certo: sabemos que não pode existir uma simples visão verdadeira substantiva, mas somente uma visão verdadeira formal; esta visão formal consiste na intuição de que toda visão compreensiva é relativa a uma perspectiva específica, ou que todas as visões compreensivas são mutuamente exclusivas e nenhuma pode ser simplesmente verdadeira. As fáceis ilusões que ocultam de nós nossa verdadeira situação, todas remontam a isto, que nós somos, ou podemos ser, mais sábios do que os homens mais sábios do passado. Somos, então, induzidos a fazer a parte não de dóceis e atentos ouvintes, mas de empresários ou domadores de leões. Ainda devemos encarar nossa incrível situação, criada pela necessidade de tentarmos ser mais do que ouvintes atentos e dóceis, ou seja, juízes, e ainda não somos juízes competentes. Como parece a mim, a causa deste situação é que perdemos de todo as tradições de autoridade nas quais podíamos confiar, o nomos que nos deu orientação competente, por que nossos professores diretos e os professores dos professores acreditavam na possibilidade de uma simples sociedade racional. Cada um de nós aqui está compelido a achar sua própria orientação pelos seus próprios poderes, por mais defeituosos que eles possam ser.

Não temos outro conforto do que aquele inerente a esta atividade. Filosofia, aprendemos, deve estar sobre seus guardas contra o desejo de ser edificante -- filosofia pode somente ser internamente edificante. Não podemos exercer nosso entendimento sem que de tempos em tempos entendamos algo de importante; e este ato de entendimento pode ser acompanhado pela consciência do nosso entendimento, pelo entendimento do entendimento, pela noesis noeseos, e isto é uma experiência tão alta, tão pura, tão nobre que Aristóteles pode subscrevê-la ao seu Deus. Esta experiência é inteiramente independente de se o que nós entendemos primeiramente é agradável ou desagradável, justo ou feio. Isto nos leva a perceber que todos os maus são, em um sentido, necessário se há de existir o entendimento. Isso nos habilita a aceitar todos os males que nos sucedem e que podem muito bem partir nossos corações, percebemos que o verdadeiro chão da dignidade do homem e, com isso, a bondade do mundo, entendamos isto como criada ou incriada, que é o lar do homem por que é o lar da mente humana.

A educação liberal, que consiste em constante interação com as grandes mentes, é um treino na mais alta forma de modéstia, para não dizer de humildade. É, ao mesmo tempo, um treinamento em audácia: ela demanda de nós a quebra completa com o barulho, a pressa, a irreflexão, a vulgaridade da Feira das Vaidades dos intelectuais, assim como de seus inimigos. Ela demanda de nós a audácia implícita na resolução de aceitar as visões como meras opiniões, ou a considerar as opiniões médias como opiniões extremas que estão, no mínimo, tão prováveis de erro quanto as opiniões mais estranhas ou menos populares. A educação liberal é a liberação da vulgaridade. Os gregos possuem uma bela palavra para "vulgaridade"; eles a chamam apeirokalia, falta de experiência das coisas belas. A educação liberal nos supre com a experiência nas coisas belas.