terça-feira, 25 de agosto de 2009

Xavier Zubiri “Notas sobre a inteligência humana”

Traduzido por: Aline Goldoni / Revisado por: Leandro Diniz

O homem tem que se haver com isso que chamamos coisas reais. Necessita, realmente, saber o que são as coisas ou as situações em que se encontra. Sem comprometimento maior, chamamos inteligência a atividade humana que procura este saber. A palavra designa aqui não uma habilidade, mas uma série de atos ou atividades. Isto é, tomamos “inteligência” não como katá dýnamin, mas sim kath’energeian. Estas notas fugazes não pretendem entrar no problema estrutural da inteligência humana, mas somente avaliar o fenômeno para essa posterior investigação.

Para que a intelecção tenha lugar é mister que as coisas nos estejam, de alguma maneira, previamente presentes. Não basta que as coisas sejam reais, nem que “haja” coisas reais no mundo; é necessário que as coisas reais nos estejam presentes em um modo especial de enfrentarmo-nos com elas, neste sentido, as coisas reais não nos estão presentes, senão desde nós mesmos, ou seja, segundo um modo nosso de enfrentarmo-nos com elas.

Qual é este modo?

Não há a menor dúvida de que em última instância as coisas me estão presentes pelos sentidos. Para entrar no problema, não me importa a diferença, profunda, mas estranha a nosso propósito, entre sensibilidade externa e interna; um tratamento extenso do tema exigiria precisar as matizes em vista desta diferença. Mas para seguir a exposição, basta se referir à sensibilidade externa, coisa sempre mais clara; porque quando falamos normalmente, se refere a sensibilidade enquanto tal.

As coisas, pois, nos estão presentes primeiramente pelos sentidos. Mas em que consiste a função sensorial que nos faz presente as coisas reais? Fala-se de percepções. Mas a percepção tem muitos momentos distintos, por exemplo, o momento intencional de referir o conteúdo sensível ao seu objeto. Sem dúvida, não é este o momento primário da sensibilidade. Sentir não é primeiramente perceber. Se eliminarmos todos os momentos intencionais da percepção, nos permanecerá o puro “sentir” algo. Que é simplesmente sentir? A questão é grave. Husserl estima que isso que aqui chamamos de puro sentir, por exemplo, sentir um calor, é tão somente o momento material ou hilético[i] da consciência perceptiva; o que chamamos sensibilidade, nos disse, representa o resíduo fenomenológico da percepção normal depois que tivermos separado a intenção. Heidegger o chama Faktum brutum e Sartre volta a falar-nos do sensível como de algo meramente residual. Mas é a sensibilidade um mero resíduo? Não será pelo contrário, o principal e elementar, aquele onde já se tem jogado a partida no problema da realidade? A própria intelecção não é estranha a esta questão essencial nem pode sê-la. Vamos avaliar nossa investigação em quatro passos:

1- Qual é, de um modo vago, mas essencial, a posição do sentir na intelecção?

2- A estrutura essencial da sensibilidade humana.

3- A estrutura essencial da intenção em si mesma.

4- A estrutura essencial da inteligência humana: a inteligência senciente.

I

A posição no ato intelectivo.

Com sua inteligência, o homem sabe, ou quando menos tenta saber, o que são as coisas reais. Estas coisas estão “dadas” pelos sentidos. Mas os sentidos, como se diz, não nos mostram o que são as coisas reais. Este é o problema que a inteligência há de resolver e só a inteligência. Os sentidos não fazem senão fornecer os “dados” de que a inteligência se serve para resolver o problema de conhecer o real. O sentido é sempre e somente o conjunto de “dados” para um problema intelectivo. É a concepção de todos os racionalismos de uma ou outra espécie, por exemplo, de Cohen: o sensível é mero “dado”.

Que isto seja verdade no que concernente a um conhecimento escrito e rigoroso, é algo inegável. Mas aqui se trata do que constitui a índole própria do sentido tomado em si mesmo. E situada assim a questão nos perguntamos: está ausente do sensível o momento de realidade? Porque a primeira coisa em que se pensa, e com razão, é em que se os dados sensíveis não possuíssem o momento de realidade, de onde o iria retirar a inteligência? Teríamos com a inteligência “idéias”, mas jamais a realidade. E é que o vocábulo e o conceito de “dado” é utilizado nesta concepção com uma singular imprecisão. Por um lado, “dado” significa dado para um problema. É o que acabamos de dizer. Mas isto, sobre ser verdade, não é a verdade primária. Porque – é o outro sentido da palavra “dado” – um dado sensível não é primeiramente dado para um problema, mas sim dado da realidade. E ao amparo do primeiro sentido, se nos quer fazer esquecer o segundo que é primário e radical. A função do sensível não é propor um problema à inteligência, mas sim ser a primeira via de acesso à realidade. A concepção anterior é uma gigantesca omissão da sensibilidade no problema filosófico de enfrentamento do homem com as coisas reais. O sentido é dado da realidade. E então se propõe inexoravelmente a questão de em que consiste o caráter destes dados, isto é, qual é a estrutura essencial da sensibilidade humana.

II

A estrutura essencial da sensibilidade humana.

Como dados da realidade, como nos dizem, os dados são “intuições”. Sentir é formalmente intuir. A inteligência entra em jogo precisamente para entender o que intuímos e até o que não intuímos. Mas o que se entende aqui por intuição?

Desde os tempos de Platão e Aristóteles, o que chamamos intuição sensível é considerado como um conhecimento (gnosis). E se tem caracterizado este conhecimento pelo seu imediatismo. Se não o vocábulo, a idéia está naqueles grandes mestres gregos. Na intuição o objeto está imediatamente presente sem a mediação de outros fatores tais como as imagens, as recordações, os conceitos, etc.. A intuição seria o conhecimento por excelência, Kat´’exokhén. A inteligência é, então, o sucedâneo conceitual que elaboramos para conhecer aquilo que não temos intuição.

Essa concepção do sentir não é falsa; mas é suficiente? Porque o certo é que o homem carece, por exemplo, de uma intuição suprasensível. Sua intuição é pura e simplesmente “sensível”. A filosofia tem proposto fazer da sensibilidade uma espécie de intelecção minúscula, esquecendo justamente o momento que a caracteriza formalmente: o ser “sensível”. O que significa este adjetivo como momento estrutural do sentir?

Na filosofia de Husserl é assinalado o problema de uma caracterização mais precisa do que é a intuição. Na intuição, o objeto está dotado de uma presença originária; ou seja, não é uma presença através de um intermédio tal como uma fotografia. Mas isto não basta. É necessário que esta “originariedade” seja tal que o objeto esteja presente leibhaftig, poderíamos traduzir “em carne e osso”. Mas em que consiste a presença? Husserl não nos diz, precisamente porque não se fez questão do caráter sensível de nossa intuição.

E é que apesar de todos esses esforços, se tem eliminado o momento mais característico e próprio da intuição sensível em benefício do momento meramente cognitivo, intuitivo. O que é, pois, voltemos a perguntar, o sensível de nossa intuição? Não é uma “presença” toda imediata que se queira, mas sim uma presença em “impressão”. Sentir é a presença impressiva das coisas. Não é mera intuição e sim intuição em impressão. O sensível de nossa intuição está neste momento de impressão.

Dito assim, sem mais, isto a rigor não é nenhuma novidade. Mas era necessário voltar a isso e perguntarmo-nos o que é impressão. Impressão é, por agora, “afeição”. O objeto afeta fisicamente os sentidos. Quando Aristóteles quer estabelecer uma diferença entre inteligência (nous) e o sentir (aisthesis) caracteriza a inteligência como algo “inafetivo”, “impassível” (apathés). A inteligência pode ser passiva, mas é impassível, não sofre afeição física como os sentidos. A filosofia moderna tem tomado este conceito de impressão como afeição. E como toda afeição é subjetiva, o sensível, como mera afeição do sujeito, fica desligado do real. Todo o empirismo se apóia nesta concepção. Mas isto é a todas as luzes insuficiente. Porque ele ser afeição não esgota a essência da impressão. Já se havia visto, desde séculos atrás, que na afeição da impressão nos é presente aquilo que nos afeta. Este momento de alteridade[ii] na afeição é a essência completa da impressão. Por isto as impressões não são meramente afeições subjetivas. E por isso também, o sensível é de uma vez um dado da realidade e um dado para a intelecção do real.

Agora bem, qual é a estrutura desta impressão assim entendida? De pronto nos encontramos com o que aparentemente é o mais problemático dela: o que chamo seu conteúdo específico. É o que em cada caso e em cada momento nos oferecem os sentidos do que são as coisas. O empirismo o chamou de “qualidades secundárias”[iii]. E a elas dirigiu sua implacável crítica negativa: a cor real não é a impressão visual da cor, etc. Não vamos entrar aqui neste problema. Mas no caso do homem, isto não esgota o que chamamos de impressão das coisas. Porque o homem não só sente “impressivamente” este “verde”, por exemplo, mas sente impressivamente a “realidade” verde. No caso das impressões humanas, a alteridade em afeição não está constituída somente por seu conteúdo, mas também por sua formalidade da realidade. O homem sente impressivamente a realidade do real. Certamente este momento de realidade não pode, sem mais, chamar-se impressão, porque não é uma segunda impressão junto à impressão do verde. Mas é que tampouco pode, sem mais, chamar-se impressão ao conteúdo. Conteúdo e realidade são dois momentos de uma só impressão: a impressão humana. Mas para contrapor-me mais explicitamente ao empirismo, e também ao racionalismo, é centralizado o problema da impressão no momento da realidade, e para abreviar é chamada a sua apreensão sensível impressão da realidade. É um momento no qual a filosofia não tem se acostumado a observar.

Em virtude de sua sensibilidade, o homem se encontra formalmente imerso na realidade. O animal também tem impressões, mas a alteridade em que elas nele se dá, é como algo meramente “objetivo”, isto é, distinto e independente da afeição que sofre. O animal reconhece a voz de seu dono como algo perfeitamente distinto de suas afeições, etc. Mas isto não passa de um “sinal objetivo” para suas respostas. A alteridade do animal lhe é sempre e somente de um sinal objetivo. Esta objetividade não deixa de ser isso: a independência a respeito da afeição, a objetividade de um estímulo cuja afeição como tal se esgota na estimulação por algo distinto do que lhe afetou. O animal pode ser , e é, objetivista, tanto mais objetivista quanto mais perfeito seja. Mas não é nem pode ser realista jamais. E esta é a questão: o animal não tem impressão da realidade. Por isso no rigor dos termos, o resíduo de que nos falam os fenomenólogos não é o conteúdo determinado da impressão, mas sim o momento mesmo da realidade. O animal carece deste resíduo.

O que é este momento da realidade? Em um estímulo, o estimulante não tem mais caráter objetivo que o de desencadear uma resposta. Seu conteúdo é somente de e para uma resposta. Ao contrário, na impressão humana o conteúdo nos afeta como algo que é propriedade sua, por assim dizer, propriedade daquilo que nos mostra a impressão; é, como podemos dizer, algo seu. Possuir como caracteres próprios seus os conteúdos da impressão. Por isto o momento de realidade não é mais um conteúdo, mas sim um modo do conteúdo, que é chamado formalidade. É uma formalidade segundo a qual nos apresenta o conteúdo das impressões sensíveis. O momento da realidade não é algo que está além do que os sentidos nos dão em suas impressões. Mas o que estas impressões nos dão são as “qualidades” como algo de seu[iv]. Sentimos como impressão da rocha, por exemplo, algo que no meu sentir mesmo se apresenta como sendo já algo de seu, a rocha de seu. Este de seuexpressa o momento ou formalidade do real.

Esta formalidade é aquilo segundo o qual nos enfrentamos primariamente com as coisas. Mas não é algo meramente subjetivo sobre o qual a inteligência arrazoa para chegar à realidade de seu das coisas; não se trata disso. O momento de realidade pertence física e formalmente a impressão como tal. O mero conteúdo sensorial nos apresenta na impressão como sendo impressivamente já algo de seu. E este “já” expressa com toda exatidão o que vínhamos dizendo. A versão da realidade, o “de seu”, é um momento físico da impressão em virtude da qual a formalidade da realidade pertence à impressão mesma em seu modo de alteridade. As coisas não nos são simplesmente presentes na impressão, mas nos são presentes nela[v], entretanto como sendo já de seu. Como é solido dizer, este momento do “já” expressa que no impressionar, a realidade do que impressiona é um prius a respeito do impressionar mesmo. Um prius que não é cronológico, mas sim algo prévio segundo sua própria razão. E por isso a remissão à coisa real é uma remissão física e possui uma imediatez física também. Na impressão sensível estamos fisicamente remetidos a realidade pela [vi] realidade mesma. Este momento da realidade, é dito, “de seu”, não se identifica com o conteúdo, nem tão pouco com a existência; ambas são reais tão somente na medida em que competem de seu ao que impressiona. Tal é a estrutura essencial da sensibilidade humana, radicalmente distinta da sensibilidade animal.

Sendo assim surge inevitavelmente a pergunta do que seja a inteligência humana e sua intelecção.

III

A estrutura formal da inteligência.

Agora voltemos a olhar para a intelecção mesma enquanto tal, inegavelmente há uma diferença essencial com o sentir. O homem não só recebe impressões das coisas, mas, além disso, as concebe e entende de uma maneira ou outra, forma projetos sobre elas, etc. Nenhum destes atos pode ser executado pelos sentidos; os sentidos, por exemplo, não podem apreender idéias gerais nem podem julgar acerca do que as coisas são. Isto é suficiente para distinguir já desde o começo do problema, a intelecção e todo o sistema de sentimentos humanos.

Mas isto não basta. Estes atos são executados tão somente pela inteligência, sim, mas em que consiste formalmente o intelecto enquanto tal? Ou seja, em que consiste formalmente o intelectual enquanto tal? É formal da inteligência o idealizar e o julgar?

Para acercar-nos a este problema procedamos passo a passo.

1. Todos os atos a que acabamos de aludir são exclusivos da inteligência. Mas a verdade é que se queremos fazer uma descrição mais precisa de tais atos nos encontramos sempre a ter de mencionar o seguinte: conceber é conceber como são ou podem ser as coisas na realidade, julgar é afirmar como são as coisas na realidade, projetar é sempre projetar como temos realmente de nos haver com as coisas, etc. Aparece sempre em todos os atos intelectuais este momento de versão da realidade. Todos os atos e atividades intelectuais se movem sempre em algo que, para facilitar a expressão, chamarei apreensão das coisas como realidades. Somente apreendidas como reais, é como a inteligência executa seus atos próprios, forçada a isso pela realidade mesma das coisas, nesse sentido, a apreensão de realidade é o ato elemental da inteligência.

2. A apreensão de realidade não é somente o ato elemental da inteligência, pois que é um ato exclusivo dela. Certamente, temos dito que na impressão da realidade – que é sensível – aparece o momento de realidade. Mas se trata da sensibilidade humana. O adjetivo “humano” era essencial no problema da sensibilidade. Deixemos, pois, de lado quanto temos dito da sensibilidade humana e atendamos tão somente ao puro sentir tal como se dá em um animal. Isto nos permitirá descobrir a essência do sentir e a essência da inteligência.

Que se entende por pura sensibilidade? Sentir, tanto fisiológica como psiquicamente, é a liberação biológica do estímulo enquanto tal. A sensibilidade se constitui e se esgota no estímulo. Por isso é pelo que o animal se move, segundo vimos, entre meros sinais objetivos. Um estímulo é sempre e somente algo que suscita uma resposta biológica. A estimulação se esgota nesse processo: é o próprio do puro sentir enquanto tal. O caráter formal da pura sensibilidade é, ao meu modo de ver, o estímulo. Toto coelo[vii] distinto é o caráter da realidade. A realidade é o caráter segundo o qual as coisas são de seu, estimulem ou não o homem, durem ou não durem além do que dure a estimulação. Por isso os estímulos reais não se esgotam no processo de estimulação. Ademais, o puro estímulo é sempre especificamente determinado, enquanto que a realidade é algo prontamente inespecífico, indeterminado. No rigor dos termos é mais que inespecífico, é transcendental, mas é um aspecto do problema que excede o nosso atual propósito. Estímulo e realidade são duas Formalidades completamente distintas. O estímulo é a formalidade das coisas em mera suscitação de resposta; realidade é a formalidade segundo a qual as coisas são de seu. O primeiro é exclusivo do puro sentir; o segundo é exclusivo da intelecção.

3. Esta versão da realidade não é somente o ato elemental e exclusivo da inteligência, mas é o primeiro e mais radical de seus atos. A apreensão da realidade é o ato radical da inteligência. É por isso que formalmente constitui o inteligir como tal. A apreensão da realidade é, com efeito, o ponto preciso em que surge no animal humano o exercício da intelecção, vejamo-lo.

Todo sentir, toda estimulação, tem três momentos: um momento receptor, um momento tônico em que se encontra o vivente em questão e um momento efetor ou de resposta adequada. Os três momentos não são senão três momentos de um só fenômeno unitário: a estimulação. Segundo seja a complexidade interna do animal, devido a uma estrutura de formalização (que não vou expor aqui), as respostas adequadas a um mesmo estímulo podem ser, e são, muito variadas; é o que constitui a riqueza do sentir animal (prescindo, naturalmente, da riqueza de especificação) mas por amplo que seja, o elenco destas respostas adequadas está assegurado, no princípio, pelas mesmas estruturas do sentir animal.

Mas no caso do homem a coisa é mais complexa. A complicação estrutural do homem é tal que o elenco de possibilidades de resposta adequada ao estímulo que o suscita não fica sempre assegurado pela estrutura do seu puro sentir: o homem é o animal hiperfomalizado. Que o homem tem que fazer então? Suspende, por assim dizer, sua atividade responsiva e, sem eliminar a estimulação, mas sim a conservando, faz uma operação que nos adultos chamamos de se dar conta da realidade. Dar-se conta do que são os estímulos e do que é a situação que os criou. Não é que abandone o estímulo e se ponha a considerar como podem ser as coisas em si mesmas; isto é inicialmente quimérico. O que faz é apreender os estímulos como algo de seu, isto é, como realidades estimulantes. É justamente o nascer da intelecção. A primeira função da inteligência é estritamente biológica; consiste em apreender o estímulo (e o próprio organismo, naturalmente) como realidade estimulante, o qual permitirá eleger a resposta adequada. A inteligência se moverá a partir daqui no âmbito da realidade aberto neste primeiro ato psico-biológico de dar-se conta da realidade, neste ato de apreender o estímulo e a situação criada como algo de seu. A inteligência está assim, por um lado, em continuidade perfeita com o puro sentir, mas, por outro, situada no âmbito do real, se vê forçada pelas mesmas coisas a concebê-las, julgá-las, etc.: é o desenvolvimento intelectivo do “primeiro” ato psico-biológico de se dar conta da realidade.

A inteligência aparece, pois, em sua função apreensora da realidade precisa e formalmente no mesmo momento de superação do puro sentir mediante uma suspensão do caráter meramente estimulante do estímulo. Por conseguinte, a apreensão da realidade não é tão somente o que sustenta elementalmente a todo ato intelectual nem é tão somente uma operação exclusiva da inteligência, mas é o ato mais radical dela. A inteligência consiste formalmente em apreender as coisas em sua formalidade de realidade. Se quer falar de “faculdade” terá que dizer que a inteligência é a faculdade do real, não, como costuma dizer-se, a faculdade do ser.

Mas então surge aqui um grave problema, que antes tínhamos deixado expressamente de lado e com o qual agora temos de enfrentar-nos. A sensibilidade humana, não a animal, sente impressivamente a realidade. Suas impressões, em efeito, o são da realidade, mas se a inteligência consiste formalmente em apreender o estímulo como realidade surge a questão essencial: qual é a “relação”, digamos assim, entre a inteligência humana e a sensibilidade humana? Qual é, em definitiva, a estrutura da inteligência humana enquanto tal?

IV

A estrutura essencial da inteligência humana: inteligência senciente.

Mostramos anteriormente que o sentir humano possui um momento próprio, a impressão da realidade, isto é, que por sua própria índole a sensibilidade humana não é puro sentir, mas um sentir cujo caráter humano consiste em sua intrínseca versão ao estímulo como realidade. Agora bem, acabamos de ver que a versão à realidade é o ato formal próprio da inteligência, o qual significa que o sentir humano é um sentir já intrinsecamente intelectivo; é por isso que não é puro sentir. Por outro lado, a inteligência humana não acede à realidade senão estando vertida desde si mesma à realidade sensível dada em forma de impressão. Todo inteligir é primaria e constitutivamente um inteligir senciente. O sentir e a inteligência constituem, pois, uma unidade intrínseca. É o que é chamado inteligência senciente. O humano de nossa inteligência não é primária e radicalmente finitude sem mais, mas sim o ser senciente. Clarifiquemos algo neste conceito, somente algo, porque o desenvolvimento completo do problema excede dos limites destas sucintas notas introdutórias.

Digamos primeiramente o que não é a inteligência senciente.

a) Não se trata unicamente de que haja uma prioridade cronológica do sentir a respeito do inteligir, ou seja, não se trata de que nihil est in intellectu quod prius non fuerit in sensu (trad. livre: nada está no entendimento que não estava antes nos sentidos). Porque, quando menos pelo que respeita o momento de realidade, este momento está apreendido em um só ato. A impressão da realidade é, em efeito, um momento do sentir humano e é às vezes o ato formal de inteligir. Neste ponto não há dois atos, um anterior ao outro, mais sim um só ato.

b) Tampouco se trata de dois atos, um de sensibilidade e outro de inteligência, que tenham o mesmo objeto. Que não existia se não um só e mesmo objeto é algo que, com razão, vem afirmando-se desde Aristóteles até nossos dias frente a todo dualismo platônico e platonizante. Não há um mundo próprio dos sentidos, um mundo sensível e um mundo próprio da inteligência, o mundo inteligível; não há senão um só mundo real. Esta mesmice do objeto sentido e do inteligido envolve inegavelmente para ser apreendido em sua mesmice alguma unidade no ato apreensor mesmo. Esta unidade consistiria em que ambos os atos, o sensível e o intelectivo, são conhecimentos, são atos cognitivos. O intelectivo é cognoscitivo porque conhece e julga o que os sentidos apreendem, e o ato de sentir é também um conhecimento intuitivo, uma gnosis. São dois modos de conhecimento. Em sua virtude, o próprio Aristóteles atribuiu às vezes características noéticas ao sentir.

Kant vai mais longe: nem sentir nem inteligir são dois atos cognitivos, pois que a inteligência e a sensibilidade são dois atos que produzem por coincidência um só conhecimento, caracterizado por isto como sintético. Husserl amplia estas considerações; sentir e inteligir seriam dois atos que compõem o ato da consciência, o ato de “se dar conta de” um mesmo objeto. Esta unidade do objeto permitiu alguma vez a Husserl falar de “razão sensível” (sinnliche Vernunft); expressão utilizada por Heidegger para uma exposição (por demais insustentável) da filosofia de Kant.

Em todas essas concepções, sem dúvida, se parte das idéias: que o sentir é por si mesmo intuição cognoscente e que o próprio da inteligência é “idealizar”, isto é, conceber e julgar.

Sem dúvida, já vimos que o sentir não é primariamente mera intuição, mas apreensão impressiva das coisas como realidades, e que o inteligir não é formalmente idealizar, mas sim apreender as coisas como realidade.

A unidade de sensibilidade e inteligência não está constituída, pois, pela unidade do objeto conhecido, se não que é algo mais profundo e radical: é a unidade do ato apreensor mesmo da realidade como formalidade das coisas.

Trata-se, pois de um só ato enquanto ato. É o que significa a expressão inteligência senciente. Certamente, entre o puro sentir e a inteligência existe uma essencial irredutibilidade. A prova está em que podem separar-se. O animal sente, mas não tem a impressão de realidade, não intelige. E no homem mesmo, a imensa maioria dos seus sentimentos são puro sentir. Sentir não é algo exclusivo desses complexos que chamamos órgãos dos sentidos. Toda célula sente ao seu modo e a transmissão nervosa é uma estrita liberação do estímulo, quer dizer, é um autêntico sentir. Sem dúvida nenhuma destas funções constituem um “se dar conta da situação” nem contém uma impressão da realidade. Que seria do homem se tivesse que se dar conta da situação a propósito, por exemplo, de cada transmissão sináptica?; não poderiam nem começar a viver. Há, pois, um sentir puro, isto é, um sentir que não é intelectivo, que para nada necessita do momento intelectivo de versão da realidade. Mas a recíproca não é certa. Toda apreensão da realidade é precisamente por via impressiva; a inteligência não tem acesso à realidade mais que impressivamente. E o momento de versão da realidade é intrínseco e formalmente um momento intelectivo; somente por isto é pelo que existe uma impressão da realidade nos sentidos. Em certo nível humano, quando faltam as respostas adequadas ao estímulo, o homem se dá conta da situação real, isto é, sente a realidade ou, o que é o mesmo, intelige sentimentalmente o real. Neste nível não há dois atos: um, de sentir, e outro, de intelegir, mas sim um só ato para um mesmo “objeto”: a formalidade da realidade. Inteligência senciente expressa, não a subordinação do inteligível ao sensível nem tão somente a unidade do objeto, mas sim a estrita unidade numérica do ato apreensor da formalidade da realidade. A inteligência humana, enquanto que inteligência em seu ato formal e próprio (a apreensão da realidade), está constitutiva e unitariamente imersa no ato do puro sentir; e o sentir, em seu nível não-puro, está formalmente constituído por um momento intelectivo, trata-se, pois, da unidade de um só ato de intelecção senciente. Não é uma unidade objetiva, mas uma unidade subjetiva do ato enquanto ato. A inteligência apreende a realidade sentindo-a, assim como a sensibilidade humana sente intelectivamente. A inteligência não “vê” a realidade impassivelmente, mas impressivamente. A inteligência humana está na realidade não compreensiva, mas impressivamente.

Qual seja a índole dessa unidade estrutural é um problema que, como se disse no começo, excede o âmbito dessas fugazes notas, que não pretendem se não analisar o fenômeno da intelecção senciente. Mas ainda reduzida a estes limites a idéia me parece essencial. Frente ao dualismo platônico de Idéias e Coisas sensíveis, Aristóteles restaurou (em uma forma ou outra, não vamos entrar no problema) a unidade do objeto, fazendo das Idéias as formas substanciais das coisas. Mas manteve sempre o dualismo de sentidos e inteligência; cada umas destas faculdades executaria um ato completo por si mesmo. Creio, sinceramente, que é mister superar este dualismo e fazer da apreensão da realidade um ato único de intelecção senciente. Ele não significa reduzir a inteligência ao puro sentir (seria um absurdo sensualismo) nem fazer do sentir, como Leibniz, uma intelecção obscura ou confusa. Em sua essencial irredutibilidade, sem dúvida, sentir humano e inteligir humano executam conjuntamente um só e mesmo ato por sua intrínseca unidade estrutural. Não é uma questão de alcance meramente dialético, é algo, a meu modo de ver, decisivo no problema do homem inteiro (não só em seu aspecto intelectivo) e em especial no problema de todos seus conhecimentos, inclusive os científicos e filosóficos.

[Publicado originalmente em ASCLEPIO, Arquivo Ibero-americano de História da Medicina e Antropologia Médica 18-19 (1966-67): 341-353.]


---------------------------------------------


[i] HILÉTICOS, DADOS (ai. Hyletische Data). Na terminologia de Husserl, dados constituídos pelos conteúdos sensíveis, que compreendem, além das sensações denominadas externas, também os sentimentos, impulsos, etc. Nesse sentido, as considerações e as análises feno-menológicas voltadas para esse elemento material são chamadas de hilético-fenomenológicas, assim como as relativas aos correspondentes momentos noéticos são denominadas noéticofenomenológicas (Ideen, I, § 85). [Dicionário de filosofia / Nicola Abbagnano ; tradução Alfredo Bosi. - 21 ed. - São Paulo : Martins Fontes, 1998, p. 499]

[ii] Alteridade (altérité) – Característica do que é outro, ou um outro. A alteridade, diferentemente da alteração, supõe uma relação entre dois seres distintos, ou supostamente distintos. É o contrário da identidade, assim como o outro é o contrário do mesmo. Poderíamos fazer disso um princípio: toda coisa, sendo idêntica a si (princípio de identidade), é diferente de todas as outras (princípio de alteridade). [Dicionário Filosófico / André Comte-Sponville ; tradução Eduardo Brandão – 1ª Ed – São Paulo : Martins Fontes, 2003, p. 25]

[iii] Sem dúvida, nessa reprodução da realidade mesma nem todos os elementos psicológicos têm igual valor ontológico. Assim, Locke distingue nas percepções que temos das coisas, das substâncias, as qualidades que ele chama secundárias e as qualidades que ele chama primárias. As qualidades secundárias são a cor, o odor, a temperatura. Essas qualidades, evidentemente, não estão nas coisas mesmas, não reproduzem realidades em si e por si, mas são modificações totalmente subjetivas do espírito. Pelo contrário, as outras qualidades, que ele chama primárias — que são a extensão, a forma, o movimento, a impenetrabilidade dos corpos — são propriedades que pertencem aos corpos mesmos, à matéria mesma. Não são, pois, puramente subjetivas como as qualidades secundárias. (http://www.consciencia.org/fundamentosfilosofiamorente14.shtml)

[iv] Nota do editor: Aqui começa essa caracterização intencional. Preferi deixar o de seu assim mesmo do que flexioná-lo em cada caso para tentar fazê-lo mais orgânico no texto, precisamente porque esse conceito é um conceito chave. Tampouco tentei achar correspondente a expressão, que seria algo “de próprio”, ou “se sua propriedade”, ou ainda “caracteristicamente seu”, o que tornaria o texto transcrito muito penoso de ler. Por isso deixei o de seu como surge no texto original.

[v] No original em espanhol en ella (em ela).

[vi] No original em espanhol por la (por aa).

[vii] Oposto completamente

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Como deve alguém ler um livro?

Como deve alguém ler um livro?

Virginia Wolf - The Common Reader, cap. 22

http://ebooks.adelaide.edu.au/w/woolf/virginia/w91c2/index.html

Tradução: Leandro Diniz

Em primeiro lugar, eu quero enfatizar o ponto de interrogação no fim do meu título. Mesmo que eu consiga responder a pergunta a mim mesma, a resposta deve se aplicar apenas a mim e não a você. O único conselho, de verdade, que uma pessoa pode dar a outra sobre leitura é não ter nenhum conselho, a seguir seus próprios instintos, a utilizar sua própria razão, a chegar a conclusões próprias. Se isso estiver acordado entre nós, então me sinto livre para colocar umas poucas idéias e sugestões, pois você não vai permitir que elas restrinjam essa independência que é a qualidade mais importante que um leitor pode possuir. Até porque, quais leis podem ser baixadas sobre livros? A batalha de Waterloo foi certamente lutada num certo dia; mas é Hamlet uma peça melhor que Rei Lear? Ninguém pode dizer. Cada um deve decidir essa questão por si mesmo. Admitir autoridades, mesmo que adornadas com peles e mantos, em nossas bibliotecas e deixá-las nos dizer como ler, o que ler, qual valor depositar sobre o que nós lemos, é destruir o espírito de liberdade que é o ar puro desses santuários. Em qualquer outro lugar podemos nos curvar diante das convenções e leis – lá nós não temos.

Mas para desfrutar a liberdade, se a platitude é perdoável, nós devemos com certeza controlarmo-nos. Nós não podemos gastar nossas forças, ignorante e desesperadamente, molhando metade da casa a fim de regar apenas um arbusto de rosas; nós devemos treiná-las, exata e poderosamente, aqui no lugar mais importante. Esta é uma das primeiras dificuldades que nós encontramos numa biblioteca. O que é “lugar mais importante”? Lá, pode muito bem parecer, que nada mais é do que uma conglomeração e um agregado de confusão. Poemas e novelas, histórias e memórias, dicionários e livros de citações; livros escritos em todas as línguas de homens e mulheres de todos os temperamentos, raças e idades brigando uns contra os outros nas prateleiras. E lá fora o zurro do burro, as mulheres fofocando na bomba, o potro galopando no campo. Por onde devemos começar? Como nós podemos trazer ordem a essa multitude caótica e conseguirmos o mais vasto e profundo prazer do que lemos?

É simples demais dizer que desde que livros possuem classes – ficção, biografia, poesia – nós devemos separá-los e extrair de cada um o que é certo de que cada um possa nos dar. Ainda poucas pessoas exigem dos livros o que os livros podem nos dar. Comumente nós vamos aos livros com a mente embaçada e dividida, exigindo da ficção o que daquilo pode ser verdade, da poesia o que pode ser falso, das biografias o que pode ser elogioso, da história o que pode reforçar nossos próprios preconceitos. Se nós pudéssemos banir todos esses preconceitos quando lêssemos, qual não seria um admirável início. Não tente dar ordens para seu autor, mas tente tornar-se nele. Seja seu companheiro de trabalho e ajudante. Se você hesitar, e fizer reservas e criticar logo de cara, você está prevenindo a si mesmo de obter todos os valores possíveis daquilo que você lê. Mas se você abrir sua mente com a maior amplitude possível, então sinais e dicas de sutileza quase imperceptível, dos giros e voltas das primeiras sentenças, lhe colocarão na presença de um ser humano como nenhum outro. Impregne-se disso, familiarize-se com isso, e logo você verá que o seu autor está lhe dando, ou está tentando lhe dar, algo muito mais definido. Os trinta e dois capítulos de uma novela – se nós considerarmos como ler uma novela antes – são uma tentativa de fazer algo tão fabricado e controlado quanto um edifício: mas palavras são mais impalpáveis que tijolos, a leitura é um processo mais longo e complicado que ver. Talvez o caminho mais rápido para entender os elementos do que um novelista está fazendo não é ler, mas escrever; fazer seu próprio experimento com os perigos e dificuldades das palavras. Relembre, então, algum evento que deixou uma impressão distinta em você – como que na esquina da rua, talvez, você passou por duas pessoas conversando. Uma árvore balançou, uma luz elétrica dançou, o tom da conversa era cômico, mas também trágico; uma visão geral, uma concepção completa, aparece contida naquele momento.

Mas quando você tenta reconstruir isso em palavras, você verá que isso se quebra em milhares de impressões conflituosas. Algumas precisam ser subjugadas; outras enfatizadas; no processo você perderá, provavelmente, todo alcance sobre a própria emoção. Então se volte das suas páginas borradas e sujas para as páginas inicias de um grande novelista – Defoe, Jane Austen, Hardy. Agora você estará melhor capacitado para apreciar sua maestria. Não é meramente que nós estejamos em presença de uma pessoa diferente – Defoe, Jane Austen ou Thomas Hardy – mas que nós estaremos vivendo num mundo diferente. Aqui, em Robinson Crusoe, nós andamos laboriosamente por uma verdadeira auto-estrada; uma coisa acontece depois de outra; o fato e a ordem do fato são suficientes. Mas se o ar livre e a aventura significam tudo para Defoe eles não significam nada para Jane Austen. Dela é a sala de visitas, e as pessoas falando, e pelos muitos espelhos de suas falas revelando suas personalidades. E se, quando tivermos nos acostumado com a sala de visitas e seus reflexos, nos voltarmos para Hardy, nós somos girados mais uma vez. As terras inférteis estão ao nosso redor e as estrelas sobre nossas cabeças. O outro lado da mente é agora exposto – o lado negro que vem, sobretudo na solidão, não o lado luminoso que aparece na companhia. Nossas relações não se dão com as pessoas, mas com a Natureza e o destino. Ainda diferentes como são esses mundos, cada um é consistente consigo mesmo. O fabricante de cada um é cuidadoso para observar as leis de sua própria perspectiva, e qual seja a enorme tensão que possam colocar sobre nós, eles nunca vão nos confundir, assim como os escritores menores geralmente fazem, ao introduzir dois tipos diferentes de realidades no mesmo livro. Assim ir de um grande novelista para outro – de Jane Austen a Hardy, de Peacook a Trollope, de Scott a Meredith – é como ser arrebatado e desarraigado; ser jogado desse jeito e depois daquele. Ler uma novela é uma difícil e complexa arte. Você deve ser capaz não somente de uma grande sutileza de percepção, mas de grande audácia de imaginação, se for fazer uso de tudo o que o novelista – o grande artista – pode lhe dar.

Mas uma espiada na companhia heterogênea da prateleira lhe mostrará que escritores muito raramente são “grandes artistas”; muito mais freqüente um livro não faz questão alguma de ser uma obra de arte. Essas biografias e autobiografias, por exemplo, vidas de grandes homens, de homens, há muito, mortos ou esquecidos, que estão lado a lado com as novelas e poemas, nós deveríamos nos recusar lê-las porque não são “arte”? Ou devemos ler em primeiro lugar para satisfazer aquela curiosidade que nos acomete de vez em quando ao passarmos a noite defronte uma casa, e hesitar, onde as luzes estão acesas e as cortinas ainda não cerradas, e cada andar da casa nos mostra uma seção diferente da vida do ser humano? Então nós somos consumidos com uma curiosidade sobre a vida dessas pessoas – os serventes fofocando, os senhores jantando, a garota se arrumando para uma festa, a mulher idosa à janela no seu tricô. Quem são eles, o que são eles, quais são seus nomes, suas ocupações, seus pensamentos, e suas aventuras?

Biografias e memórias respondem a tais perguntas, alegram inúmeras dessas casas; elas nos mostram pessoas fazendo as coisas do dia a dia, trabalhando, falhando, tendo sucesso, comendo, odiando, amando, até a sua morte. E algumas vezes na medida em que olhamos, a casa esmaece e os trilhos de ferro desaparecem e nós estamos então no mar; estamos caçando, velejando, pescando; estamos entre selvagens e soldados; estamos tomando parte nas grandes campanhas. Ou se nós gostamos de permanecer aqui na Inglaterra, em Londres, mesmo assim a cena muda; a rua se estreita, a casa fica menor, apertada, em formato de diamante, e malcheirosa. Nós vemos um poeta, Donne, conduzido por tal casa, pois as paredes são tão finas que quando as crianças choram suas vozes cortam através delas. Nós podemos segui-lo, entre os caminhos que estão nas páginas de livros, para Twickenham; para Lady Bedford´s Park, um famoso lugar de encontro de nobres e poetas; e então girar nossos passos em direção a Wilton, a grande casa sob o monte, e ouvir Sidney ler a Arcadia para sua irmã; e passear entre aqueles pântanos e ver aquelas garças que figuram naquele famoso romance; e novamente viajar ao norte com aquela outra Lady Pembroke, Anne Clifford, para sua charneca selvagem, ou mergulhar na cidade e controlar nossa alegria na visão de Gabriel Harvey em seu terno negro de veludo conversando sobre poesia com Spencer. Nada é mais fascinante que tatear e tropeçar no esplendor e trevas da Londres Elizabetana. Mas lá não existe a permanência. Os Temples e os Swifts, os Harleys e o St. John nos acenam; hora depois de hora pode-se passar desembaraçando suas querelas e decifrando seus personagens; e quando nos cansamos deles podemos ir, passando pela dama de preto usando diamantes, a Samuel Johnson e Goldsmith e Garrick; ou cruzar o canal, se preferirmos, e encontrar Voltaire e Diderot, Madame Du Deffand; e então voltar à Inglaterra e Twickenham – como certos lugares se repetem e certos nomes! – onde uma vez Lady Bedford teve seu Parque e Pope lá viveu depois, para a casa de Walpole na Strawberry Hill. Mas Walpole nos introduz a tais abundantes novos conhecidos, existem tantas casas a visitar e sinos a badalar que nós podemos hesitar por um momento, nos degraus da entrada de Miss Berry, por exemplo, quando observamos, lá vem Thackeray; ele é o amigo da mulher que Walpole amou; assim meramente indo de amigo a amigo, de jardim a jardim, de casa a casa, nós passamos de um fim da literatura inglesa a outro e acordamos para nos achar novamente aqui no presente, se nós pudermos então diferenciar este momento de todos que passaram antes. Isto, então, é um dos jeitos nos quais podemos ler essas vidas e cartas; podemos fazê-los acender as muitas janelas do passado; nós podemos assistir os mortos famosos em seus hábitos familiares e imaginar às vezes que estamos bem perto e podemos surpreender seus segredos, e às vezes podemos tirar uma peça ou um poema que eles escreveram e ver se a sua leitura muda na presença do autor. Mas isso, de novo, desperta outra questão. Quanto, devemos nos perguntar, é um livro influenciado pela vida do autor – quanto é seguro deixar o homem interpretar o autor? Quanto devemos resistir ou abrimo-nos às simpatias e antipatias que o próprio homem despertou em nós – tão sensíveis são as palavras, tão receptivo do caráter do autor? Estas são questões que nos pressionam quando nós lemos vidas e cartas, e devemos responder por nós mesmos, pois nada pode ser mais fatal que ser guiado pelas preferências dos outros em assunto tão pessoal.

Mas também podemos ler tais livros com outro propósito, não para trazer luz à literatura, não para se tornar familiarizado com pessoas famosas, mas a fim de refrescar e exercitar nossos próprios poderes criativos. Não existe uma janela aberta do lado direito da estante de livros? Quão delicioso é parar de ler e olhar pela janela! Como é estimulante a cena, na sua inconsciência, na sua irrelevância, no seu movimento perpétuo – os potros galopando ao redor do campo, a mulher enchendo o balde no poço, o burro jogando sua cabeça para trás e emitindo seu longo, amargo lamento. A grande parte de qualquer biblioteca não é nada mais que o registro de tais momentos fugazes nas vidas dos homens, mulheres, e burros. Toda literatura, na medida em que envelhece, tem sua acumulação de momentos perdidos, seus registros de momentos desaparecidos e vidas esquecidas contadas com acentuações vacilantes e débeis que se extinguiram. Mas se você se permitir às delicias da leitura desses lixos você será surpreendido, de fato estará sujeito, pelas relíquias da vida humana que foram invocadas para mofar. Pode ser uma carta – mas que visão isso dá! Podem ser poucas sentenças – mas que imagens sugerem! Algumas vezes toda uma estória virá unificada com tal belo humor e emoção e completude que parecerá como se um grande novelista tivesse trabalhado, ainda que seja somente um velho ator, Tate Wilkinson, lembrando a estranha estória do Capitão Jones; é somente um jovem subalterno servindo a Arthur Wellesley e se apaixonando com a bela garota em Lisboa; é somente Maria Allen deixando cair sua costura na sala de visitas vazia e suspirando como que desejara que tivesse aceitado o bom conselho de Dr. Burney e tivesse fugido com seu Rishy. Nada disso tem nenhum valor; é insignificante ao extremo; ainda quão impressionante é agora e novamente ir através dos restos e achar anéis e tesouras e narizes quebrados enterrados no vasto passado e tentar juntá-los enquanto o potro galopa ao redor do campo, a mulher enche o balde no poço, e o burro zurra.

Mas nós cansamos de leitura frívola com o passar do tempo. Cansamos de procurar pelo que é necessário a completar as meias-verdades que é tudo o que os Wilkinsons, os Bunburrys, e as Maria Allens são capazes de nos oferecer. Eles não possuem o poder artístico de dominar e eliminar; eles não poderiam contar toda a verdade mesmo sobre suas próprias vidas; eles desfiguraram a estória que poderia ser tão formosa. Fatos são tudo o que eles podem nos oferecer, e fatos são uma forma bem inferior de ficção. Então o desejo cresce em nós por termos de lidar com meios-relatos e aproximações; para cessar de procurar pelos ínfimos tons da personalidade humana, para desfrutar as maiores abstrações, a pura verdade da ficção. Então nós criamos o temperamento, intenso e generalizado, sem conhecimento dos detalhes, mas enfatizado por alguma regularidade, um pulso recorrente, de que a expressão natural é a poesia; e está no tempo de ler poesia quando nós estamos praticamente impelidos a escrevê-la.

Western wind, when wilt thou blow?

The small rain down can rain.

Christ, if my love were in my arms,

And I in my bed again!

(Tradução livre:

Vento do oeste, quando tu ventarás?

A pequena garoa pode chover

Cristo, se meu amor estive em meus braços,

E eu na minha cama novamente!)

O impacto da poesia é tão forte e direto que no momento não existe outra sensação exceto aquela do próprio poema. Que profundezas profundas visitamos então – como repentina e completa é nossa imersão! Não existe nada aqui para se apoderar; nada para apoiar nossa viagem. A ilusão da ficção é gradual; seus efeitos são preparados; mas quem quando lê essas quatro linhas se detém a se perguntar quem as escreveu; ou traz à mente o pensamento da casa de Donne ou da secretária de Sidney; ou os captura no intrincado passado e na sucessão das gerações? O poeta é sempre nosso contemporâneo. Nosso ser naquele momento é centrado e constringindo, como em um choque violento de emoção particular. Subseqüentemente, é verdade, a sensação começa a se espalhar em círculos maiores na nossa mente; sentidos remotos são alcançados; isto começa a soar e comentar e ficamos cientes dos ecos e reflexos. A intensidade da poesia cobre uma imensa gama de emoções. Temos somente que comparar a força e o imediatismo de

I shall fall like a tree, and find my grave

Olny remembering that I grieve,

(Tradução livre:

Tombarei como uma árvore, e acharei meu túmulo

Lembrando somente que sofro,)

com a modulação ondulatória de

Minutes are numbered by the fall of sands,

As by an hour glass; the span of time

Doth waste us to our graves, and we look on it;

An age of pleasure, reveled out, comes home

At last and ends in sorrow; but the life,

Weary of riot, numbers every sand,

Wailing in sighs, until the last drop down,

So to conclude calamity in rest,

(Tradução livre:

Minutos são numerados pelo cair das areias,

Como por uma hora de vidro; a duração do tempo

Faz-nos terminar em nossos túmulos, e os observamos;

Uma era de prazer, revelada, volta para o lar

Finalmente e termina em aflição; mas a vida,

Exausta de confusão, numera cada areia,

Lamenta em suspiros, até a queda da última gota,

Para concluir a calamidade no descanso,)

ou colocar a calma meditativa de

whether we be young or old,

Our destiny, our being’s heart and home,

Is with infinitude, and only there;

With hope it is, hope that can never die,

Effort, and expectation, and desire.

And something evermore about to be,

(Tradução livre:

se somos jovens ou velhos,

Nosso destino, nosso ser é coração e o lar,

É com infinitude, e somente lá;

Com esperança é, esperança nunca pode morrer,

Esforço, e expectativa, e desejo.

E algo mais sempre está pra ser,)

junto a amabilidade completa e exaustiva de

The moving Moon went up the sky,

And no where did abide:

Softly she was going up,

And a star or two beside –

(Tradução livre:

A Lua dançante subiu no céu,

E em lugar algum permaneceu:

Suavemente ela foi subindo,

E uma ou duas estrelas ao lado –)

ou a fantasia esplendida de

And the woodland haunter

Shall not cease to saunter

When, far down some glade

Of the great world’s burning,

One soft flame upturning,

Seems, to his discerning,

Crocus in the shade.

(Tradução livre:

E o assombrador da floresta

Não cessará de vaguear

Quando, longe abre uma clareira

Da maior queimadura do mundo,

Uma chama suave se vira,

Parece, a sua distinção,

Nas sombras um açafrão.)

para nós refletirmos sobre a variedade da arte do poeta; seu poder de fazer-nos de uma só vez atores e espectadores; seu poder de correr a mão pelo personagem como se fosse uma luva, e ser Falstaff ou Lear; seu poder de condensar, de expandir, a expressar, uma vez e pra sempre.

“Nós só temos que comparar” – com essas palavras o gato está fora do saco, e a verdadeira complexidade da leitura é admitida. O primeiro processo, receber impressões com a mais alta compreensão, é somente metade do processo da leitura; que precisa ser completado, se queremos obter o prazer total de um livro, por outro. Devemos passar o julgamento sobre essas impressões inumeráveis; devemos transformar essas formas transitórias em uma que seja mais rígida e duradoura. Mas não diretamente. Espere pela poeira da leitura assentar; para o conflito e os questionamentos a se amarrarem; ande, converse, puxe as pétalas mortas de uma rosa, ou adormeça. Então repentinamente sem o nosso desejo para tal, pois assim é que a natureza nos conduz nessas transições, o livro vai retornar, mas diferentemente. Ele flutuará ao topo da mente como um todo. E o livro como um todo é diferente do livro recebido no momento em frases separadas. Detalhes agora se encaixam nos seus lugares. Nós vemos a forma do começo ao fim; seja isto um celeiro, um curral de porcos, ou uma catedral. Então agora podemos comprar livro com livro como comparamos edifícios com edifícios. Mas esse ato de comparação significa que nossa atitude mudou; não somos mais amigos do escritor, mas seus juízes; e assim como não podemos ser tão simpáticos como amigos, assim como juízes não podemos ser muito severos. Não são eles criminosos, livros que gastaram nosso tempo e simpatia; não são eles os mais insidiosos inimigos da sociedade, corruptores, poluentes, os escritores de falsos livros, livros fingidos, livros que enchem o ar com decadência e doença? Deixe-nos então ser severos em nossos julgamentos; deixe-nos comparar cada livro com os maiores da sua espécie. Ali eles mantém na mente as formas dos livro que lemos solidificados pelos julgamentos que fazemos deles – Robbinson Crusoe, Emma, The Return of Native. Compare as novelas com esses – mesmo a mais recente e mínima das novelas tem o direito de ser comparada com as melhores. E assim com a poesia – quando a intoxicação do ritmo tiver abrandado e o esplendor das palavras tiver murchado uma forma visionária retornará a nós e esta precisa ser comparada com Lear, com Fedra, com O Prelúdio; ou se não com esses, com quaisquer que sejam os melhores ou pareçam a nós serem os melhores da sua espécie. E devemos ter certeza que a renovação da nova poesia e ficção é sua mais superficial qualidade e que nós temos de alterar levemente, e não a remodelar, os padrões com que julgamos os antigos.

Seria tolo, então, pretender que a segunda parte da leitura, o julgamento, a comparação, é tão simples quanto à primeira – abrir a mente amplamente para o aglomerado rápido de inumeráveis impressões. Para continuar lendo sem o livro diante de você, para reter uma forma-sombra contra outra, para ter lido com amplitude suficiente e com suficiente entendimento para fazer tais comparações vivas e iluminadoras – esta é a dificuldade; é ainda mais difícil ir mais a fundo e dizer, “Não somente esse livro é desse tipo, mas ele é desse valor; aqui ele falha; aqui ele sucede; isto é ruim; aquilo é bom.” Para conseguir realizar essa parte, da obrigação do leitor, é necessário tal imaginação, intuição, e aprender que é difícil conceber uma mente qualquer suficientemente com qualidade e habilidade; impossível para o mais autoconfiante achar mais do que as sementes de tais poderes em si mesmo. Poderia ser sábio, então, ceder essa parte da leitura e permitir que os críticos, as autoridades adornadas com peles e mantos da biblioteca, decidam a questão do valor absoluto do livro para nós? Ainda, quão impossível! Nós podemos alargar o valor da simpatia; podemos tentar afundar nossa própria identidade ao lermos. Mas sabemos que não podemos simpatizar inteiramente ou nos imergir inteiramente; sempre há um demônio em nós que sussurra, “Eu odeio, eu amo,” e não podemos silenciá-lo. De fato, é precisamente por que odiamos e amamos que nossa relação com poetas e novelistas é tão íntima que achamos a presença de outra pessoa intolerável. E mesmo se os resultados forem abomináveis e nossos julgamentos estejam errados, ainda sim é nosso gosto, o nervo da sensação que envia choques através de nós, é o nosso chefe iluminador; nós aprendemos através do sentimento; não podemos suprimir nossa própria idiossincrasia sem empobrecê-la. Mas na medida em que o tempo passa talvez possamos treinar nosso gosto; talvez possamos submetê-lo a certo controle. Quando ele tiver se alimentado abundante e gulosamente de livros de todos os tipos – poesia, ficção, história, biografia – e tiver parado de ler e olhado por longos espaços sobre a variedade, a incongruência do mundo dos vivos, nós devemos achar que ele está mudando um pouquinho; ele não é tão insaciável, ele é mais refletivo. Isto irá começar a trazer-nos não meros julgamentos de livros particulares, mas irá nos dizer que existe uma qualidade comum em certos livros. Ouça, isto lhe dirá, o que devemos nós chamar isto? E isto vai ler-nos talvez o Rei Lear e talvez Agamemnon a fim de nos trazer essa qualidade comum. Dessa forma, com o nosso gosto nos guiando, devemos nos aventurar além do livro particular na busca de qualidades que unem livros em grupos; nós devemos dar-lhes nomes e, então, enquadrar uma regra que traga ordem nas nossas percepções. Devemos ganhar uma avançada e profunda satisfação dessa discriminação. Mas como uma regra só vive quando é perpetuamente quebrada pelo contato com os próprios livros – nada é mais fácil e mais degradante do que criar regras que existem fora de contato com os fatos, num vácuo – agora pelo menos, em prol de firmamo-nos nessa tentativa difícil, poderá ser bom se virar aos mui raros escritores que são capazes de esclarecer-nos sobre a literatura como uma arte. Coleridge e Dryden e Johnson, no seu criticismo considerado, os próprios poetas e novelistas em seus dizeres irrefletidos, são freqüentemente surpreendentemente relevantes; eles iluminam e solidificam as idéias vagas que vem tropeçando pela neblina das profundezas das nossas mentes. Mas eles só podem nos ajudar se nós viermos até eles cheios de dúvidas e sugestões ganhas honestamente no curso de nossas próprias leituras. Eles nada podem fazer por nós se nos reunirmos sobre sua autoridade e deitarmos como ovelhas nas sombras do cercado. Nós só podemos entender suas regras quando entram em conflito com as nossas próprias e as derrotam.

Se assim for, se para ler um livro como deve ser lido se pede as mais raras qualidades da imaginação, intuição, e julgamento, você poderá talvez concluir que a literatura é uma arte muito complexa e que é muito improvável que sejamos capazes, mesmo depois de uma vida inteira de leituras, a fazer qualquer contribuição valiosa ao seu criticismo. Nós devemos permanecer leitores; não vestiremos a distante glória que pertence aqueles raros seres que são também críticos. Mas ainda temos nossas responsabilidades como leitores e até nossa importância. Os padrões que construímos e os julgamentos que temos passam e infiltram o ar e se tornam parte da atmosfera que os escritores respiram como suas obras. Uma influência é criada e recai sobre eles, mesmo que isso nunca encontre um caminho até a publicação. E essa influência, se é bem instruída, vigorosa e individual e sincera, poderá ser de grande valor agora quando o criticismo está necessariamente pendente; quando livros passam por análises como a procissão de animais numa galeria de caça, e o crítico tem somente um segundo no qual carregar e mirar e atirar e for perdoado se errar trocando coelhos por tigres, águias por galinhas de porta de celeiro, ou errar tudo e desperdiçar seu tiro sobre alguma pacífica leitoa pastando em um campo distante. Se atrás do errático tiroteio da mídia o autor sentir que existe outro tipo de criticismo, a opinião das pessoas que lêem pelo amor da leitura, vagarosamente e de maneira não profissional, e julgando com grande simpatia, mas com grande severidade, não iria isso aumentar a qualidade da sua obra? E se pelos nossos meios os livros fossem ficando mais sólidos, ricos, e com maior variedade, isto seria um bom fim que valeria alcançar.

Mas quem lê para produzir um fim no entanto desejável? Não existem algumas buscas que praticamos porque elas são boas em si mesmas, e alguns prazeres que são últimos? E não é isso entre eles? Eu sonhei algumas vezes, pelo menos, que quando o Dia do Juízo Final vier e os maiores conquistadores, e advogados e políticos vierem para receber suas recompensas – suas coroas, suas homenagens, seus nomes cinzelados indelevelmente sobre o mármore imperecível – o Todo Poderoso se voltará para Pedro e dirá, não sem uma certa inveja quando ele nos olhar vindo com nossos livros sobre nossos braços, “Olhem, esses não precisam de recompensas. Nós não temos nada a dar-lhes aqui. Eles amaram a leitura.”

O Marxismo como ideologia do poder.

Ernst Topitsch

Revista de Estudios Políticos - Número 199. Enero - Febrero. 1975

http://www.cepc.es/rap/Frames.aspx?IDS=fkcdcdj2enonxk552v5dxe45_809080&ART=2,9381,REP_199_245.pdf

Traduzido por: Aline Goldoni / Revisão: Leandro Diniz


“Parece como se no futuro teria de se aplicar em maior medida a teoria do inconsciente aos grupos revolucionários. O fenômeno da inversão de fins e meios desperta a suspeita de que sob os fins conscientes se encontravam desde o princípio fins inconscientes de outra índole. Os fins conscientes, cuja figura representa a sociedade sem classes e sem Estado, servem em tais casos a ocultação do desejo subconsciente de ‘absolutização’ própria do poder.”

Assim escreveu o marxista iugoslavo Svetozar Stojanovic em seu livro de 1970, “Crítica e futuro do socialismo”. Com ele, o autor comunista reiterou uma conclusão que Sigmund Freud já havia formulado em 1932 em uma carta dirigida a Albert Einstein: “Quando ouvimos das crueldades da história, temos as vezes a impressão de que os motivos ideológicos só teriam servido de pretexto aos apetites destrutivos, e outras vezes, por exemplo, nas crueldades da sagrada Inquisição, cremos que os motivos ideológicos teriam passado a primeiro plano na consciência, e que os motivos destrutivos lhes teriam proporcionado um apoio inconsciente. Ambas as coisas são possíveis.”

A possibilidade posterior de que crueldades poderiam ser cometidas tão somente com bons fins e sem outros motivos, nem sequer foi tomada em consideração por este profundo conhecedor da alma humana. Assim, ele já se referiu ao fato fundamental de que ideais ou utopias altamente morais – como também “humanísticos, emancipatórios ou progressivos – poderiam servir de modo inconsciente ou até consciente, de disfarce e arma a ânsia de poder, ao desejo de destruição, ao ódio, a inveja e ao ressentimento.

Neste sentido, foi realizada, desde a década de 1960, no campo do pensamento ilustrativo, psicoanalítico e também marxista uma “desmistificação da revolução” que nem sequer se deteve frente a seus profetas e os Santos Padres. Entre os pesquisadores que serão citados aqui, em primeiro lugar se encontra o austríaco Robert Waelder, um discípulo de Freud, que teve que emigrar em 1938 e ocupou cargos acadêmicos elevados como psicanalista na América do Norte. Sua obra póstuma, escrita em alemão. “Progresso e Revolução” (1970), oferece uma excelente análise das brilhantes fachadas, da nobre ilusão e dos efetivos motivos e estratégias, muito menos brilhantes e nobres, dos movimentos revolucionários e dos seus redentores até mesmo o “Che” Guevara. Referem-se, em especial, ao pai do materialismo histórico as obras de Arnold Künzli, Karl Marx. Uma psicografia (1966); Ernest Kux, Karl Marx. A declaração revolucionária (1967), e a biografia de Marx de Robert Payne (1968), que até agora só existe em inglês. Infelizmente, estas obras importantes não tem tido até agora a atenção correspondente ao seu valor. Para muitos leitores, se tem aprofundado na correnteza inapreciável da literatura do marxismo, e nos setores de esquerda se tem vislumbrado sua eminente periculosidade e a silenciado cuidadosamente. Em último lugar, também me esforcei em compilar as idéias desses autores em meu livro Deificação e Revolução (Munique, Pullach, 1973), e em classificá-las em relações mais amplas.

O caso é que se as teses bem fundamentadas desses trabalhos estão certas, terá de ser revisada totalmente ou até eliminada uma lenda que tem exercido e ainda hoje exerce uma considerável influência político-cultural. Trata-se da fé no pensamento humanístico-revolucionário que, segundo se diz, teria inspirado o jovem Marx, mas que no Marx posterior teria sido reprimido por um modo de ver mais estreitamente econômico e teria sido substituído finalmente no marxismo soviético por uma ideologia do poder “bizantinicamente” estagnada. Esta concepção teve uma divulgação extraordinariamente ampla na época do pós-guerra, pois correspondia aos interesses mais variados.

Os intelectuais do Oriente que queriam humanizar o sistema de seu mundo, acreditavam encontrar a legitimação marxista deste nas primeiras obras do pensador, de certo modo no evangelho ainda puro. Muitos representantes das Igrejas que desde o final dos anos de 1950 desenvolveram um crescente prazer pelo “diálogo”, queriam ver na fase prematura “antropológica” um esforço pelo homem que pode constituir uma base comum para um humanismo cristão e marxista. Não poucos amigos ocidentais do marxismo que detestavam e depreciavam sua simplificação e petrificação stalinista, consideravam aqueles primeiros textos como fundamento para uma nova iniciativa emancipatória que devia evitar o “beco sem saída” da ortodoxia de Moscou.

Parece que tudo isso se põem agora radicalmente em dúvida. Argumentos importantes falam em favor da tese contrária, ou seja, de que Marx havia desenvolvido desde o princípio sua concepção da historia e da sociedade, pelo menos subconscien-temente, como glorificação e justificação ideológica de suas próprias aspirações de poder e domínio relacionado com a fé em seu apostolado messiânico e com tendências até ao auto-endeusamento. O caso é que as investigações mais recentes confirmam e ampliam uma das características mais agudas que possuímos da personalidade e dos fins do revolucionário, ou seja, a carta do tenente Techow, na qual este oficial informa a um amigo na Suíça acerca de uma conversa com Marx em 21 de agosto de 1850. Techow teria tido que fugir da Alemanha devido a sua participação na revolução de 1848-49, e encontrou em Londres com Marx que queria ganhá-lo como seguidor. Esta informação é conhecida há muito tempo, mas é citada na literatura quase sempre como um trecho somente, omitindo-se em tal caso as partes mais importantes do mesmo. Está escrito com serenidade e sem animosidade; em alguns pontos revela uma admiração aberta, e em outros há no fundo um tom de sentimento.

Durante esta conversa, Marx havia tomado, provavelmente animado por seu parceiro, grande quantidade de vinhos fortes e estava ao final “totalmente bêbado. Isto – escreve Tchecow – correspondia plenamente aos meus desejos, pois Marx foi sendo cada vez mais sincero do que provavelmente teria sido em outra ocasião. Obtive certeza a respeito de muitas coisas que em outro caso teriam seguido sendo suspeitas para mim. Apesar de seu estado dominou até o fim a conversa.

“Deu-me a impressão não só de uma superioridade intelectual pouco freqüente, como também de uma personalidade importante. Se tivesse tanto coração como cérebro, tanto amor como ódio, eu passaria pelo fogo por ele, apesar de que em particular havia insinuado em várias ocasiões seu menosprezo total, até que ao final o havia expressado abertamente. Ele é o primeiro e o único entre nós a que atribuo a força de governar, a força de não se perder no pequeno até sobre importantes circunstancias.

“Lamento por nosso objetivo que este homem não possa oferecer junto ao seu eminente espírito um coração nobre. Mas tenho a convicção que a ambição pessoal mais perigosa tenha destruído tudo de bom nele. Se ri dos estúpidos que rezam com ele seu catecismo do proletariado..., o mesmo que dos burgueses. Os únicos a quem respeita são os aristocratas, os puros e os que são conscientes. Afim de eliminá-los do poder necessitava de sua força que encontrou unicamente nos proletários, e por isto havia adaptado seu sistema a estes.

“Apesar de todas suas afirmações contrárias, talvez precisamente da raiz delas se obtém a impressão de que seu poder pessoal é o propósito de toda sua atividade. Engels e todos seus antigos sócios, apesar de seus bonitos talentos, se encontram muito por baixo e atrás dele, e se alguma vez o omitem, os faz retroceder a sua primitiva relação com uma insolência digna de um Napoleão.”

O próprio Marx confirmou indiretamente essa caracterização como certa: quando o documento desmascarador chegou a conhecimento público, uns nove anos mais tarde, devido a uma imprudência, sua ira beirou a loucura. Mas a informação de Techow, cuja importância sublinhou sobretudo Robert Payne, é confirmada, ampliada e aprofundada por uma grande quantidade de dados biográficos anteriores, assim como pela análise crítica da estrutura e da exigência de verdade da doutrina de Marx.

Ernes Kux e, em especial, Arnold Künzli, demonstraram convincentemente, a raiz de uma valoração minuciosa precisamente dos primeiros documentos - e também dos intentos poéticos que neste aspecto são muito reveladores – que Marx já estava dominado em seu tempo de estudante por uma consciência de apostolado messiânico, por pretensões cesarianas de poder e por incontroláveis desejos de destruição. Sempre reencontramos nesses poemas uma ânsia de destruição deste mundo acompanhada de trapaça e sentimentos de vingança, como, por exemplo:

Dann werf ich den Handschuh hóhnend
Einer Welt ins breite Angesicht,
Und die Riesenzwer'gin stürze dróhnend,
Meine G!ut erdrückt ihr Trümmer nicht.

Então, eu atirei as luvas zombando
Um mundo de vasta extensão,
E o de Riesenzwergin caiu ecoando
Minha fartura não sobrepujou sua destruição.

A destruição total do mundo ao jovem de dezenove anos como base e confirmação da sua divindade:

Gotterahnlich darf ich wandeln,
Siegreich ziehn durch ihr Ruingnreiche.

Como um deus posso me parecer,
Triunfo conquistado através da derrocada de seu poder.

A esta tendência até o endeusamento também correspondia o comportamento autoritário que já mostrava o jovem Marx, e que exigia a submissão e não permitia contradição alguma. Sua filha, Eleonor Marx-Aveling, já assinala, inclusive, Marx “como uma criança era um horrível tirano”. Uma descrição do ano de 1846 fala deste revolucionário como se segue: “seu jeito... era arrogante, com um indício de desprezo, e sua voz, metálica, estava em estranha concordância com os julgamentos radicais que expressava a respeito das pessoas e coisas. Não se manifestava de outra maneira do que em julgamentos que não admitiam contradição... Esta característica expressava a firme convicção de que sua missão era a de dominar os espíritos, de impor-lhes sua vontade...; tinha ante a mim a encanação do ditador democrático”. Mas também, em geral, surpreende sempre novamente a atitude totalmente intolerante e orientada até o domínio absoluto que Marx adotava inclusive e precisamente em frente de seus amigos e correligionários. Não exigia somente reconhecimento, respeito e apoio, mas sim submissão incondicional. Comunistas e anarquistas como Moses Hess e Michael Bakunin teriam lamentado amargamente dele, e de certo modo do outro final do espectro político procede a confirmação disso através da informação de um agente de polícia do ano de 1853, que diz: “M. não admite rivalidade a respeito da sua autoridade como chefe do partido, e é vingativo e implacável contra seus rivais e inimigos políticos; não pára até tê-los aniquilado; sua condição predominante é uma ambição e uma ânsia de poder sem limites. Apesar da unidade comunista que é seu propósito, ele é o dominador absoluto do seu partido; é certo que ele mesmo faz tudo, mas também só ele mesmo dá as ordens, e nesse aspecto não admite oposição”.

Só um discípulo da natureza de Engels podia submeter-se a ele, e também não podia fazer sempre. As demais amizades se quebraram devido àquela exigência absoluta. Michael Bakunin, que como personalidade dinâmica e prometéica mostrava certas semelhanças com o criador do materialismo histórico, não só pressentiu as conseqüências totalitárias de sua doutrina, como também foi mais fundo quando enfatiza que Marx era tão intolerante e autocrático como Jeová, e até mesmo tão vingativo quanto este.

Também Heine, quem – segundo expôs Dolf Sternberger em seu livro publicado recentemente Heinrich Heine e a abolição do pecado - compartilhou durante algum tempo, sob a influência de Hegel e do saint-simonismo francês, a idéia de auto-endeusamento comentada em suas Confissões, de 1854, dos jovens hegelianos e de “seu amigo muito mais obstinado Marx” como de “auto-divindades atéias”.

Com base nisto, sem dúvida, pode demonstrar-se, até em detalhes, que Marx não aplicou sua pretensiosa construção do processo histórico e social somente ao proletariado, mas também primeiramente a ele próprio, como Techow havia analisado de maneira correta. O destino geral da humanidade é exposto aqui, de certo modo, como show gigantesco ao redor da figura do Deus-redentor procedente de Trier. O esquema fundamental para isso Marx desenvolveu da raiz de uma tradição neoplatonica-gnóstica e cabalística que foi facilitada sobretudo por Schelling e Hegel. No escopo deste trabalho não é possível aprofundar mais no que se refere à natureza daquela mística de auto-endeusamento, na qual o “Deus futuro” só se converte realmente em Deus através do homem que se auto-endeusa. Marx, desde cedo, modificou consideravelmente, o motivo do “endeusamento de Deus pelo endeusamento do homem” que encontramos em Hegel. No caso mundial, interpretado por ele como um processo universal de salvação, não é Deus que se exterioriza até o mundo para alcançar através do ser humano sua própria consciência e com isto chegar a sua própria perfeição e divindade consciente de si mesmo, mas sim a humanidade trabalhadora que está submetida à alienação e escravização, e que alcança seu ponto culminante ou seu ponto mais baixo no proletariado convertido pelo capitalismo em mercadoria e totalmente desumanizado.

Entretanto, esse ponto mais baixo é ao mesmo tempo o começo de uma nova fase, porque aqui aparece Marx, quem mostra ao proletariado e com isso a humanidade o caminho predestinado da desumanização até a obtenção da recuperação de sua verdadeira humanidade, revelando o sentido objetivo da história que até então estava ocultado por uma “falsa consciência”. O mesmo que o deus do idealismo absoluto só chega a ser consciente em Hegel, através de Hegel e graças a Hegel, do processo universal como caminho necessário até uma verdadeira divindade, a alcançando deste modo, o “deus da humanidade” do ateísta judeu somente chega a ser consciente em Marx, através de Marx e graças a Marx, do processo histórico como caminho necessário até sua verdadeira perfeição, a qual, desde cedo, não pode ser alcançada mediante mera contemplação filosófica, mas sim por meio de ações revolucionárias. Enquanto o filósofo que especulativamente se transformava em Deus pode realizar seu trabalho na tranqüilidade escritório, o desejo de poder do transformador do mundo, levado até o exterior, precisava dos meios necessários exteriores de poder, e estes Marx acreditava ter encontrado no proletariado.

A dramatização da própria pessoa endeusada até o ponto crucial em que se revela ao deus da humanidade o segredo de sua redenção, e a realização prática das exigências de poder relacionadas com isso são a priori a partir de que Marx projetou sua construção da história. Este esquema fundamental já está completo e disposto muito antes do Manifesto Comunista. Com isso não nos propomos afirmar que Marx estivera claramente consciente deste seu modo de proceder; mas também, ao menos a princípio, os elementos tradicionais do messianismo judaico e as especulações gnóstico-idealistas de auto-endeusamento formaram nele um sistema que deveria considerar como descobrimento genial sem apreciar os mecanismos psíquicos que, ocultados, exerciam sua influência. Entretanto, da conversa com Techow se percebe evidentemente que o profeta revolucionário já se aproximava às vezes, pouco depois de alcançar os trinta anos de idade, da visão do que verdadeiramente significava sua doutrina sobre a missão do proletariado como redentor da humanidade. A informação do tenente inclusive faz pensar que não se pode excluir totalmente a possibilidade de que Marx então já tinha se servido daquilo muito conscientemente, e quem sabe com certo cinismo, do mito do proletariado como um instrumento de política de poder pessoal. No entanto, mais provável é que o pensador revolucionário sempre tenha suprimido as dúvidas que lhe surgiam e havia conservado assim a fé em sua doutrina ao menos como uma forma de mentira vital.

Também poderia ser um meio para essa opressão a exigência que Marx sempre formulava de novo com a insistência patética no que se refere à cientificidade de sua doutrina. Desde cedo, Marx realizou indubitavelmente obras científicas importantes e deu sugestões de valor para a pesquisa posterior. Entretanto, justamente no lugar realmente decisivo do seu sistema não correspondeu a um dos princípios fundamentais de toda a cientificidade ao privar sua doutrina, talvez conscientemente, de toda possibilidade de revisão: quase não falamos nas indicações específicas, algumas a cerca do estado futuro de salvação da humanidade já não alienada e acerca do caminho que leva até esse ponto. Künzli assinala nesta relação que Marx não indicou, com toda intenção, nada específico nesse ponto “porque temia comprometer-se demasiadamente com isto, por em perigo sua grande concepção histórica da salvação ao descrever e discutir detalhes que se poderiam analisar, confrontar com a realidade, criticar ou contradizer em parte ou totalmente. Mas com isso colocaria em duvida toda a concepção histórica da salvação”.

Apesar de todas as manifestações contrárias, não se trata, pois, nos pontos decisivos da construção da história realizada por Marx, de uma revelação científica, nem tão pouco de um melhor futuro para a humanidade. O pensador não oferece nenhuma antecipação controlável nem uma planificação daquele estado futuro de salvação baseada em fundamentos razoáveis da intuição. Este estado de salvação permanece, porém, em uma incerteza sublime e há de servir, em sua magnitude que não pode submeter-se a controle e crítica, às exigências de poder e as necessidades de destruição do revolucionário.

Assim, a doutrina de Marx demonstra ser em grande medida um instrumento político-psicológico. A profecia da vitória necessária da revolução proletária há de encher os seguidores de inquebrantável confiança, incitar aos que ainda vacilam a aderir à causa que amanhã terá êxito e, se é possível, há de desmoralizar os adversários. Além disso, a doutrina da revolução como verdadeira “humanização da humanidade” devia prover a própria luta da mais elevada aureola moral, e deveria formar um juízo moral, mais destruidor sobre a classe combatida, mas também sobre os rivais democráticos e socialistas.

A burguesia que se opõe ao processo universal de salvação não só é barrada finalmente por isto, como se faz culpada ao mesmo tempo de crime contra a humanidade ao mantê-la em estado de não-humanidade e se propor a impedir sua libertação universal e humanização. Assim, o burguês se estigmatiza (apesar de inconscientemente, uma vez que está dotado de uma “falsa consciência”) como não humano. Desde cedo, Marx não atribui esta culpa somente ao capitalista individual, mas também ao sistema capitalista como tal, o aeon da abjeção, contra o que o proletariado expressa julgamento com inevitável necessidade.

No entanto Marx submete a um veredicto ao menos igualmente duro aos seus rivais comunistas, cujos sistemas pretendiam ter superado por seu próprio “socialismo científico” e contra os que formulavam, além disso, a suspeita de que tiveram motivos moralmente condenáveis. A “inveja geral que se constitui como poder em tal ‘comunismo tosco’ só é a forma oculta pela qual surge a cobiça, que unicamente se satisfaz de outro modo. A idéia da propriedade privada como tal, ao menos quando está dirigida contra a propriedade privada mais rica, está dominada pela inveja e a ânsia de nivelação...; o comunismo tosco só é o complemento desta inveja e desta nivelação a partir de um mínimo imaginado...”.

O pensador revolucionário estava, então, muito consciente dos motivos que freqüentemente respaldam as doutrinas e movimentos comunistas, e nesta relação também deveria ter refletido acerca de seus próprios motivos. Mas ao que parece, aqui retornam a atuar os mecanismos de supressão: seu próprio comunismo não só está, como “ciência”, muito acima daquelas formas “toscas”, mas também como “abolição positiva da propriedade privada como auto-alienação humana” e, por isso, como “apropriação verdadeira da essência humana por e para o homem”, segundo o que se queira compreender com base nessas formulações.

Assim, Marx ocultou a problemática dos motivos e metas do comunismo, que conjecturava com claridade em seus rivais, em seu próprio caso diante de si mesmo e de outros atrás de uma construção mais exigente da história, cujas elevadas pretensões científicas e morais, sem dúvida, demonstraram ser irrealizáveis.

Enquanto permanece certa indecisão a questão de se e até que ponto Marx chegou a estar consciente da verdadeira motivação e função de sua doutrina histórico-filosófica da salvação, em Lenin estão muito mais claras as coisas. É quase certo que o pai do poder soviético acreditou até sua idade madura na verdade do marxismo, pois podemos seguir exatamente como se transformou no vitorioso revolucionário nos últimos anos da sua vida, por causa de experiências decepcionantes, um evidente processo de desilusão. Mas Marx não retirou disso conseqüências fundamentais contra a doutrina marxista, mas sim tratou de salva-la transladando a um futuro indeterminado o advento do estado de salvação no sentido de um adiamento da parusía. Mas também para Lênin, ao menos inconscientemente, a doutrina do futuro império da paz, da não-violência, da liberdade e da plenitude teria desta maneira o fim de prover de uma aureola a satisfação de exigências de poder de crueldades e de desejo de destruição, assim como de dissipar as objeções morais que se puseram contra. Tais tendências se revelam bastantes claras nos próprios escritos de Lênin. A este respeito é especialmente impressionante uma passagem da revista Espada Vermelha, órgão oficial da Tchecoslováquia, de 18 de agosto de 1919: “O nosso é um novo código de moral. Nossa humanidade é absoluta, pois se baseia sobre o ideal glorioso da eliminação da tirania e da submissão. Tudo nos é permitido, pois somos os primeiros no mundo que fazem uso da espada não só para escravizar e submeter, mas sim em nome da liberdade e da libertação da escravidão”.

Talvez possa se atribuir boa fé a Lênin e sua bainha. Mas quase seis décadas depois podemos apreciar claramente, a luz das comoventes experiências, mas também com ajuda da crítica mais desenvolvida da ideologia, quão facilmente pode servir uma suposta humanidade e emancipação absoluta como disfarce e arma do poder absoluto e do terror absoluto.

Ernst Topitsch