terça-feira, 7 de setembro de 2010

Alfred Schutz – Sobre as realidades múltiplas

Eis um trecho do livro "El Problema de la realidad social” de Alfred Schutz. Que vai das páginas 197 a 206. Vai-me perdoar o leitor especialista em Schutz se eu utilizar alguma transliteração mal-feita. Mas creio ter dado cabo de boa tradução. O título do capítulo já diz sobre o que o texto versa. Bastando lembrar que as notas feitas por mim estão assinaladas como “notas do trad.”. Sem mais por enquanto, boas leituras.

9. Sobre as realidades múltiplas

Em um famoso capítulo de seus Princípios de Psicologia, William James analisa nosso sentido da realidade.[1] Segundo ele, a realidade significa simplesmente uma relação com nossa vida emocional e activa[2]. A origem de toda realidade é subjetiva; tudo o que excita e estimula nosso interesse é real. Chamar uma coisa real, significa que esta se encontra em certa relação com nós. "A palavra 'real', em resumo, é uma orla."[3] Nosso impulso primitivo tende a imediatamente afirmar toda a realidade de tudo concebido, enquanto não seja contradito. Mas existem várias ordens de realidade, talvez um número infinito delas, cada uma das quais têm seu próprio estilo especial e separado de existência. James os chama "subuniversos" e menciona como exemplos o mundo dos sentidos ou das coisas físicas (como realidade eminente), o mundo da ciência, o mundo das relações ideais, o mundo dos "ídolos da tribo", os diversos mundos sobrenaturais da mitologia e da religião, os diversos mundos da opinião individual e dos mundos da mera loucura e divagação.[4] A mente popular concebe todos estes submundos de maneira mais ou menos inconexa, e quando faz referência a um deles esquece no momento suas relações com os demais. Sem embargo[5], todo objeto que pensamos se refere, em última instância, a um destes submundos. "Enquanto se atenta a ele, cada mundo é real à sua maneira; somente que sua realidade desaparece quando deixa de prestar-lhe atenção."[6]

Com essas observações, o gênio de James tocou uma das questões filosóficas mais importantes. Limitando intencionalmente sua indagação ao aspecto psicológico do problema, se absteve de embarcar em uma investigação das muitas implicações que têm. Ainda que fragmentárias, as considerações que faremos a seguir pretendem esboçar um primeiro enfoque de algumas das tais implicações, com o propósito especial de lançar alguma luz sobre a relação entre a realidade do mundo da vida cotidiana e aquele da contemplação teórica, científica.

I. A realidade do mundo da vida cotidiana

1. A atitude natural da vida cotidiana e seu motivo pragmático

Começaremos por analisar o mundo da vida cotidiana que o homem adulto alerta, que actua nele e sobre ele, experimenta entre seus semelhantes, dentro da atitude natural, como uma realidade. "Mundo da vida cotidiana" significará o mundo intersubjetivo que existia muito antes de nosso nascimento, experimentado e interpretado por Outros, nossos precedentes, como um mundo organizado. Agora está dado à nossa experiência e interpretação. Toda interpretação deste mundo se baseia em um acervo de experiências anteriores do mesmo, que funcionam como um esquema de referência na forma de "conhecimento à mão." A este acervo de experiências à mão, pertence nosso conhecimento de que o mundo em que vivemos é um mundo de objetos bem circunscritos, com qualidades definidas, entre os quais nos movemos, que resistem a nós e sobre os quais podemos actuar. Para a atitude natural, o mundo não é, nem tem sido nunca, um mero agregado de manchas coloridas, ruídos incoerentes, centros de calor e frio. A análise filosófica ou psicológica da constituição das nossas experiências pode logo, retrospectivamente, descrever como os elementos deste mundo afetam os nossos sentidos, como os percebemos passivamente de uma maneira indistinta e confusa, como mediante a apercepção[7] activa nossa mente destaca certos caracteres do campo perceptual, os concebendo como coisas bem delineadas, que se destacam sobre um fundo ou horizonte mais ou menos inarticulado. A atitude natural não conhece esses problemas. Para ela, o mundo é, desde o começo, não o mundo privado do indivíduo isolado, mas um mundo intersubjetivo, comum a todos nós, no qual temos um interesse, não teórico, mas eminentemente prático. O mundo da vida cotidiana é o cenário e, também, o objeto das nossas ações e interações. Para levar à cabo os propósitos que buscamos nele, entre nossos semelhantes, temos que o dominar e modificar. Actuamos e obramos não só dentro do mundo mas também sobre ele. Nossos movimentos corporais -- sinestésicos, motores, operativos -- engrenam, por assim dizer, no mundo, modificando ou alterando seus objetos e suas relações mútuas. Por outro lado, estes objetos oferecem resistência aos nossos actos, resistência que devemos superar ou a qual devemos nos render. De tal modo, se pode dizer, corretamente, que um motivo pragmático governa nossa atitude natural em direção ao mundo da vida cotidiana. Neste sentido, o mundo é algo que devemos modificar através de nossas ações ou o que as modifica.

2. As manifestações espontâneas do homem no mundo externo e algumas de suas formas

Mas, o que deve se entender pelo termo "ação" que acabamos de empregar? Como experimenta o homem que está na atitude natural de suas próprias "ações" dentro do mundo e sobre ele? Como é óbvio, as "ações" são manifestações da vida espontânea do homem. Mas este não experimenta todas as tais manifestações como ações, nem tampouco todas suas ações como provocando alterações no mundo externo. Lamentavelmente, as diferentes formas de todas estas experiências não são distinguidas com claridade no pensamento filosófico atual, não existe nenhuma terminologia de aceitação geral.

Em vão buscaríamos ajuda no comportamentismo e sua distinção entre conduta manifesta e conduta latente, categorias as quais se agrega às vezes uma terceira, a de conduta submanifesta, com o fim de caracterizar a manifestação de espontaneidade nos atos da linguagem. Não é nosso objetivo criticar aqui a falácia básica do ponto de vista comportamentista ou discutir o caráter insatisfatório e inconsistente da tricotomia que acabamos de mencionar. Para nossos fins basta mostrar que a interpretação comportamentista da espontaneidade não pode contribuir em nada à questão que nos ocupa: a de saber como são experimentadas as diferentes formas de espontaneidade pela mente em qual se originam. Na melhor das hipóteses, o comportamentismo é um esquema de referência útil para quem observa a conduta de outras pessoas. Ele, e só ele, poderia estar interessado em examinar as atividades dos homens ou dos animais de acordo com um esquema relacional de referência como o do estímulo-resposta, ou organismo-ambiente, e só desde seu ponto de vista são acessíveis estas categorias. Nosso problema, sem embargo, não é o que sucede ao homem como unidade psicofisiológica, mas a atitude que adota em direção a esses eventos; em resumo, o sentido subjetivo que o homem outorga a certas experiências de sua própria vida espontânea. Condutas que para o observador parecem objetivamente as mesmas, podem ter para o sujeito sentidos muito distintos, ou não os ter em absoluto. Como já foi mostrado,[8] o sentido não é uma qualidade inerente à certas experiências que surgem dentro do nosso fluxo de consciência, mas o resultado de uma interpretação de uma experiência passada contemplada desde o Agora com uma atitude reflexiva. Enquanto vivo nos meus actos, dirigidos aos objetos e tais actos, estes não possuem nenhum sentido. Apresentam-se providos de sentido se os capto como experiências circunscritas do passado; portanto, na retrospecção. A saber, que somente as experiências que podem ser recontadas para além de sua actualidade e que podem ser questionadas em relação à sua constituição são subjetivamente providas de sentido.

Mas se foi aceita essa caracterização do sentido, há alguma experiência da minha vida espontânea que não seja subjetivamente provida de sentido? Em nossa opinião, a resposta é afirmativa. Existem os meros reflexos fisiológicos, como o reflexo rotuliano, a contração da pupila, a tremulação, o rubor, assim como certas reações passivas provocadas pelo que Leibniz chama: a onda do indiscernível e pequenas percepções confusas; e, ademais, minha inclinação, minha expressão facial, meu ânimo, as manifestações da minha vida espontânea, que tem como resultado certas características da minha escrita, sujeitas a interpretação grafológica, etc. Todas estas formas de espontaneidade involuntária são experimentadas enquanto ocorrem, mas sem deixar nenhum rastro na memória; como experiências são -- empregando uma expressão de Leibniz -- muito adequadas para este problema em particular; percebidas, mas não apercebidas. Instáveis e inseparáveis das experiências circundantes, não podem ser delineadas nem recordadas. Pertencem à categoria das experiências essencialmente actuais, ou seja, que existem somente na actualidade de ser experimentadas e não podem ser captadas mediante uma atitude reflexiva.[9] As experiências subjetivamente providas de sentido que surgem da nossa vida espontânea receberão o nome de comportamento (conduct). (Evitamos o termo "conduta" [behavior] porque no uso atual inclui também manifestações espontâneas não providas de sentido, como os reflexos.) Tal como será utilizado aqui, o termo "comportamento" se refere a todo tipo de experiências espontâneas subjetivamente providas de sentido, sejam as da vida interior ou as que se inserem no mundo externo. Se nos é permitido empregar termos objetivos numa descrição de experiências subjetivas -- e depois do esclarecimento anterior já não há perigo de mal-entendido --, podemos dizer que o comportamento pode ser manifesto ou latente. O primeiro será chamado mero fazer, e o segundo mero pensar. Sem embargo, o termo "comportamento", tal como o utilizamos aqui, não implica nenhuma referência à intenção. Todo tipo de atividades chamadas automáticas da vida interior ou exterior -- por exemplo, atividades habituais, tradicionais, afetivas -- formam parte desta classe, a qual Leibniz denominou "classe da conduta empírica."

O comportamento planejado de antemão, quer dizer, baseado num projeto pré-concebido, será chamado ação, independentemente de que seja manifesto ou latente. Enquanto a este último, deve se distinguir se tem-se ou não a intenção de cumprir o projeto, de levá-lo à cabo, de criar um estado de coisas projetado. Tal intenção transforma o mero pré-meditar, em um objetivo e o projeto num propósito. Se falta a intenção de realização, a ação latente projetada não passa de ser uma fantasia, um sonho; se subsiste, podemos falar de uma ação dotada de propósito ou de uma efectuação. Um exemplo de ação latente que constitue uma efectuação é o processo de pensamento projetado como o intento de resolver mentalmente um problema científico.

Em relação às chamadas ações manifestas, ou seja, ações que se inserem no mundo externo mediante movimentos corporais, não é necessário diferenciar entre as que estão e as que não estão acompanhadas da intenção de as realizar. Toda ação manifesta é uma efectuação, segundo o significado que a temos dado. Com a finalidade de distinguir as efectuações do mero pensar (latente) daquelas que exigem movimento corporais (manifestas), chamaremos a estas últimas, execuções.

Uma execução é, por conseguinte, uma ação no mundo externo baseada em um projeto e caracterizada pela intenção de produzir um estado de coisas projetado mediante movimentos corporais. Entre todas as formas descritas de espontaneidade, a execução é a mais importante para constituir a realidade do mundo da vida cotidiana. Como veremos em breve, o si-mesmo alerta integra em seu executar, e por seu intermédio, seu presente, passado e futuro em uma dimensão temporal específica; se concretiza como totalidade em seus actos executivos, e por meio deles se comunica com Outros e organiza as diferentes perspectivas espaciais do mundo da vida cotidiana. Mas antes de abordar estes problemas, devemos explicar o que significa a expressão "si-mesmo alerta" que acabamos de empregar.

3. As tensões da consciência e a atenção à vida

Na filosofia de Bergson, um dos pontos centrais é sua teoria segundo a qual nossa vida consciente mostra um número indefinido de planos diferentes, que vão desde o plano da ação, em um extremo, ao plano do sonho, em outro. Cada um destes planos se caracteriza por uma tensão específica da consciência, de onde o plano da ação mostra a maior tensão e o do sonho a menor. De acordo com Bergson, estes diferentes graus de tensão da nossa consciência são funções de nossos variados interesses na vida; a ação representa nosso máximo interesse, enquanto a enfrentar a realidade e satisfazer seus requisitos, e o sonho a falta completa de interesse. A attention à la vie -- a atenção à vida -- é, pois, o princípio regulador básico de nossa vida consciente. Define o âmbito de nosso mundo que é importante para nós; articula nossa corrente de pensamento em fluxo contínuo; determina o alcance e a função de nossa memória; nos faz viver -- em nossa linguagem -- nossas experiências presentes, dirigidas aos seus objetos, ou nos voltarmos em uma atitude reflexiva em direção das nossas experiências passadas, em busca de seu significado.[10]

Com a expressão estado de alerta queremos indicar um plano da consciência de elevadíssima tensão, que se origina em uma atitude de plena atenção à vida e seus requisitos. Só o si-mesmo efectuante e, em especial, o executante, está plenamente interessado na vida e, por fim, alerta. Vive em seus atos e sua atenção está dirigida exclusivamente a pôr em prática seu projeto, a executar seu plano. Esta atenção é ativa, não passiva. A atenção passiva é o oposto do estado de alerta. Na atenção passiva experimento, por exemplo, a onda de pequenas percepções indiscerníveis que são, como antes dissemos, experiências essencialmente actuais, e não manifestações de espontaneidade providas de sentido. A espontaneidade provida de sentido pode ser definida, segundo Leibniz, como: o esforço que tende a chegar a percepções novas. Em sua forma inferior, conduz à delimitação de certas percepções as transformando em apercepção; em sua forma superior, conduz a levar à cabo execuções que se inserem no mundo externo e o modificam. O conceito de estado de alerta revela o ponto de partida para uma interpretação pragmática legítima[11] da nossa vida cognoscitiva. O estado de alerta de si-mesmo executante perfila o setor do mundo que tem significação pragmática, e estas significações determinam a forma e o conteúdo de nossa corrente de pensamento: a forma, porque regula a tensão de nossa memória e, com ela, o alcance de nossas experiências passadas recordadas e de nossas experiências futuras antecipadas; o conteúdo, pois todas essas experiências sofrem modificações específicas de atenção pelo projeto pré-concebido e sua colocação em prática. Isto nos leva de modo imediato a uma análise da dimensão temporal em que o si-mesmo executante experimenta seus próprios atos.

4. As perspectivas temporais do "ego agens" e sua unificação

Começamos por estabelecer uma distinção referida às ações em geral, tanto latentes como manifestas, entre a ação como processo em curso, como actuação em movimento (actio), por um lado, e a ação como acto efectuado, como a coisa feita (actum), por outro. Enquanto vivo em minha actuação, em movimento, estou dirigido em direção do estado de coisas que será criado por esta actuação. Mas então não tenho em vista minhas experiências deste processo de actuação em curso. Para fazê-lo, tenho que voltar-me até minha actuação adotando uma atitude reflexiva. Como o formulou uma vez Dewey, devo deter-me e pensar. Se adoto esta atitude reflexiva, o que posso captar não é, sem embargo, minha actuação em curso. O que posso unicamente captar é meu acto efectuado (minha actuação passada) ou, se minha actuação continua, todavia, enquanto dirijo os olhos para trás, as fases iniciais efectuadas (minha actuação presente). Enquanto vivia em meu actuar em curso, este era um elemento de meu presente vívido; agora esse presente foi convertido em passado, e a experiência vívida de meu actuar em movimento fora substituída por minha lembrança de ter actuado ou a memória de ter estado actuando. Visto desde o presente atual, no qual adoto a atitude reflexiva, minha actuação passada ou pretérita perfeita só é concebível em termos de actos efectuados por mim.

Assim, posso viver no processo em curso de minha actuação, dirigida ao seu objeto, e experimentar minha actuação no tempo presente (modo presenti), ou bem posso sair, por assim dizer, do fluxo em curso e contemplar com uma visão reflexiva os actos realizados nos processos prévios de actuação no tempo passado ou pretérito perfeito (modo praeterito). Como se disse em um parágrafo anterior, isto não significa que somente tenham sentido os actos efectuados, mas não as ações em curso. Devemos ter presente que, por definição, a ação se baseia sempre em um projeto pré-concebido, e esta referência ao projeto precedente é o que dota de sentido o actuar e o acto. Mas, qual é a estrutura temporal de uma ação projetada? Quando projeto minha ação, ensaio, como disse Dewey, minha ação futura na imaginação.[12] Isto significa que antecipo o resultado de minha ação. Contemplo em minha imaginação esta ação antecipada como a coisa que deverá se fazer, o acto que deverá ser efectuado por mim. Ao projetar, contemplo meu acto no tempo futuro perfeito, o penso modo futuri exacti. Mas estas antecipações são vazias e podem resultar ou não cumpridas pela ação, uma vez efectuada. O acto passado ou pretérito perfeito, no entanto, não mostra nenhuma de tais antecipações vazias. O que no projeto era vazio foi cumprido ou não. Nada fica sem definição, sem decisão. Posso recordar as antecipações abertas envolvidas no projetar do acto, e até as protensões[13] que acompanham meu viver no processo em curso de minha actuação. Mas agora, na retrospecção, as recordo em termos de minhas antecipações passadas, que foram cumpridas ou não. Por fim, somente o acto efectuado, nunca a actuação em curso, pode resultar um êxito ou um fracasso.

O que foi dito é válido para todo tipo de ação; mas agora devemos nos voltar à estrutura peculiar da execução como efectuação corporal no mundo externo. Em suas investigações, Bergson, e também Husserl, destacaram a importância de nossos movimentos corporais para a constituição do mundo externo e sua perspectiva temporal. Experimentamos nossos movimentos corporais simultaneamente em dois planos diferentes: na medida em que são movimentos no mundo externo, os contemplamos como eventos que têm lugar no espaço e no tempo, medidos em termos do caminho percorrido; na medida em que são experimentados conjuntamente desde dentro como mudanças que se produzem, como manifestações de nossa espontaneidade pertencentes ao nosso fluxo de consciência, compartilham nosso tempo interior ou durée. O que acontece no mundo externo pertence à mesma dimensão temporal a qual têm lugar os eventos da natureza inanimada; pode ser registrado mediante mecanismos apropriados e medido com nossos cronômetros. É o tempo espacializado, homogêneo, forma universal do tempo objetivo cósmico. Por outro lado, está o tempo interior ou durée, dentro do qual nossas experiências actuais se conectam com o passado mediante recordações e retenções, e com o futuro mediante protensões e previsões. Em nossos movimentos corporais, e mediante eles, efectuamos a transição de nossa durée ao tempo espacial ou cósmico, e nossas ações executivas participam de ambos. Na simultaneidade experimentamos a ação executiva como uma série de eventos no tempo exterior e no interior, unificando ambas dimensões em um só fluxo que será denominado presente vívido. Por conseguinte, o presente vívido se origina numa interseção da durée e o tempo cósmico.

Ao viver no presente vívido em seus actos executivos em curso, dirigido aos objetos e objetivos que se querem alcançar, o si-mesmo executante se experimenta como originador das ações em curso e, por outro lado, como um si-mesmo total indiviso. Experimenta seus movimentos corporais desde dentro; vive nas experiências correlacionadas essencialmente actuais que são inacessíveis à recordação e à reflexão; seu mundo é um mundo de antecipações abertas. O si-mesmo executante, e somente o si-mesmo executante, experimenta todo este modo presenti e, ao se experimentar como o autor desta execução em curso, se realiza como unidade.

Mas se o si-mesmo, em uma atitude reflexiva, se volta aos actos executivos efectuados e os contempla modo praeterito esta unidade se rompe. O si-mesmo que efectuou os actos passados já não é o si-mesmo total indiviso, senão um si-mesmo parcial, aquele que efectua este acto particular que se refere a um sistema de actos correlacionados, ao qual pertence. Este si-mesmo parcial é simplesmente o que adota um papel ou -- utilizando, com todas as reservas necessárias, um termo bastante equívoco que James e Mead introduziram na literatura sobre o tema -- um Mim (Me).

Não podemos entrar aqui em um exame detalhado das difíceis implicações desta questão, o qual exigiria expor e criticar o intento de abordar estes problemas, bastante incompleto e inconsistente, de que tem o autor G. H. Mead. Limitar-nos-emos a assinalar a distinção que Mead estabelece entre a totalidade do si-mesmo actuante, ao que denomina o "Eu", e os si-mesmos parciais dos actos efectuados, os que adotam papéis, aos quais chama os "Mins". Até agora, a tese apresentada neste artigo coincide com a análise realizada por Mead. Também há acordo com Mead quando disse que o "Eu" não entra na experiência senão depois de que já tenha levado à cabo o acto, aparecendo assim experiencialmente como parte do Mim, ou seja, que o Mim aparece em nossa experiência na memória.[14]

Para nossos fins, a mera consideração de que as experiências interiores de nossos movimentos corporais, as experiências essencialmente actuais e as antecipações abertas não são apreendidas pela atitude reflexiva mostra com suficiente clareza que o si-mesmo passado nunca pode ser senão um aspecto parcial do si-mesmo total que se concreciona na experiência de sua execução em curso.

Devemos adicionar algo relacionado com a distinção entre execução (manifesta) e efectuação (não manifesta). No caso de uma mera efectuação, como o intento de resolver mentalmente um problema matemático, posso anular todo o processo das operações mentais e voltar a começar desde o princípio, se minhas previsões não se cumprem no resultado e este não me satisfaz. Nada mudou no mundo externo, não haverá nenhum vestígio do processo anulado. Neste sentido, as ações somente mentais são revogáveis. A execução, no entanto, é irrevogável. Minha obra modificara o mundo externo. Na melhor das hipóteses, posso restaurar a situação inicial com medidas opostas às anteriores, mas não posso desfazer o que está feito. Esta é a razão pela qual, desde o ponto de vista legal e moral, sou responsável pelas minhas ações, mas não de meus pensamentos. Também por isto tenho a liberdade de escolher entre várias possibilidades somente quanto uma obra mentalmente projetada, antes de cumprida no mundo externo ou, ao menos, enquanto cumprida no presente vívido e está, todavia, até o fim, sujeita a modificações. Com respeito ao passado, não há possibilidade de escolha. Uma vez concretizada a minha obra, ou ao menos parte dela, está escolhido de uma vez por todas o que está feito e devo agora encarar as conseqüências. Não posso escolher o que quisera ter feito.

Até agora nossa análise tem-se referido à estrutura temporal da ação -- e como corolário, da estrutura temporal do si-mesmo -- dentro do fluxo de consciência isolado do indivíduo, como se o homem alerta na atitude natural pudesse ser concebido como separado de seus semelhantes. Esta abstração fictícia foi feita, naturalmente, com o único fim de aclarar a exposição dos problemas envolvidos. Devemos passar agora à estrutura social do mundo do executar.


[1] Principles of Psychology, vol. II, cap. XXI, pags. 283-322

[2] N. do trad. - Aqui traduzirei toda a sorte de derivações do vocábulo acto, com o c. Não só o ato tem aquele sentido de atuação, de agente movente, mas também de actualização, no sentido do acto Aristotélico, que aqui se contrapõe à latente. Eis pois, a modo de resgate de um significado perdido à muito, que farei tal tipo de ajuste na tradução.

[3] Ibid., pag. 320.

[4] Ibid., pag. 291 e segs.

[5] N. do trad. - Sem embargo, conquanto utilizado por Machado de Assis em sua obra, já não é mais utilizado, ele possui o sentido de: Não obstante; apesar de. Mas como creio que a expressão tem um sentido próprio particular que difere dessas outras aqui apresentadas, não a trocarei.

[6] Ibid., pag. 293.

[7] N. do trad. - a partir daqui uso apercepção, termo originário espanhol com equivalente em português, com o sentido de intuição. Como tradução de apercepção o uso de intuição encontrará dificuldades, pois mais tarde intuición. A diferença é que apercepção está relacionada com a percepção consciente de algo, enquanto intuição com a percepção imediata e sem necessidade de raciocínios.

[8] Alfred Schutz, Der sinnhafte Aufbau der sozialen, Welt,& Viena, 2ª ed , 1960, págs. 29-43, 72-93.

[9] Em relação a "atitude reflexiva" cf. Marvin Farber, The Foundation of Phenomenology, Cambridge, 1943, p. 523 e segs., e também 378 e segs.; cf. também, Dorion Cairns "An Approach to Phenomenology", em Marvin Farber, ed, Philosophical Essays in Memory of Edmund Husserl, Cambridge, 1940, p. 8 e segs. O conceito de "esperiências essencialmente actuais" não se encontra, sem embargo, nos escritos de Husserl, quem opinava que em princípio todo acto pode ser captado na reflexão.

[10] Ainda que esta exposição não se conforme estritamente à terminologia de Berg­son, esperamos ter transmitido de modo adequado o esencial de seu pen­samento. Oferecemos uma seleção de algumas passagens dos escritos de Bergson que são importantes para o problema que nos ocupa: Es sai sur les données immédiates de la conscience,*** Paris, 1889, pp. 20 e segs. , 94-106; Matière et Mémoire, Paris, 1897, pp. 189-95, 224-33; «Le rêve» (1901), en L'Energie spirituelle, Paris, 1919, pp. 108-11; «L'effort intellectuel» (1902), em ibid., pp. 164-71; «Introduction à la métaphysique» (1903), em La Pensée et le Mouvant, Paris, 1934, pp. 233-38; «Le souvenir du présent et la fausse re­connaissance» (1908), L'Energie spirituelle, págs. 129-37; «La conscience et la vie»(1911) em ibid., pp. 15-18; «La perception du changement (1911), em La Pensée et le Mouvant, pp. 171-75; 190-93; «Fantôes de vivant» e «Recherche psychique» (1913), em L'Energie spirituelle, pp. 80-84; «De la position des problèmes» (1922), em La Pensée et le Mouvant, p. 91 e segs.

[11] Com muito poucas exceções, o pragmatismo vulgar não aborda os problemas da constituição da vida consciente implicados na noção de um ego agens ou um homo faber, da qual a maioria dos autores partem como algo dado. Por conseguinte, o pragmatismo só é no fundamental uma descrição de sentido comum da atitude do homem no mundo do executar cotidiano, mas não uma filosofia que investigue as pressuposições de tal situação.

[12] Human Nature and Conduct,& Nueva York, 1922, parte 3-, secc. III, «The Nature of Deliberation».

[13] N. do trad. - protensão vem de protender: estender para diante.

[14] Véase George H. Mead, Mind, Self and Society, Chicago, 1934, págs. 173-75, 196-98, 203; «The Genesis of the Self», reimpreso en The Philosophy of the Present, Chicago, 1932, págs. 176-95, esp. págs. 184 y sigs.; «What Social Objects Must Psychology Presuppose?», Journal of Philosophy, vol. viu, 1910, págs. 174-80; «The Social Self», Journal of Philosophy, vol. x, 1913, págs. 374-80. Véase también el excelente libro sobre Mead de Alfred Stafford Clay­ton, Emergent Mind and Education, Nueva York, 1943, págs. 136-41, esp. pág. 137. Sin duda, es un mérito de Mead haber comprendido las relaciones entre acto, sí-mismo, memoria, tiempo y realidad. Por supuesto, la posición que se expone en este artículo no es conciliable con la teoria de Mead sobre el origen social dei sí-mismo ni con su conductismo (modificado), que lo lleva a interpretar todos los fenómenos mencionados en términos de estímulo y respuesta. Hay mucha más verdad en el famoso capítulo x de William James, Principles of Psychology, en el que no solo puede hallarse la distinción entre el Mi (Me) u el yo (I), sino también la referencia a los movimientos cor­porales, la memoria y el sentido del tiempo.

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