A Educação do Entendimento pelo Estudo da Linguagem
Felipe Robles Dégano
Tradução: Aline Goldoni e Leandro Diniz
Se algum
dos meus doutos e ilustres ouvintes assistiu ao quinto Congresso das Ciências,
celebrado em Valladolid em 1915, talvez recordará meu nome. Eu, certamente, não
assisti; mas o R.P. Eusebio Hernández, S.J., leu nesta seção um notabilíssimo
trabalho sobre a “Fisionomia das palavras castelhanas”, no qual fez
grandessíssimos elogios à minha primeira obra, intitulada: “Ortologia clássica da
língua castelhana com uma carta prólogo do Exmo. Sr. Don Marcelino Menéndez y
Pelayo”.
Foi meu
primeiro ofício enviar ao dito padre uma solene ação de graças por aquela
recomendação tão honorífica, a qual me obriga neste Congresso a falar, não
pelos meus livros, mas em pessoa e como representante dos homens de ciência de
minha província e diocese de Avila, que vemos o progresso científico com o
interesse que merece assunto de tal importância.
Não me
peças eloquência tampouco retórica, porque não sou orador nem literato; mas
espero interessar vossa atenção tratando de uma ciência já muito antiga e
difícil, na verdade, mas que é necessária para que o estudante e o homem de
ciência nela avancem. Esta ciência é a que tem por objeto conhecer, formar e
educar o entendimento humano.
O homem de
ciência é semelhante a um piloto de avião; e assim como este é mister conhecer
muito minuciosamente o mecanismo de sua aeronave e a arte de pilotá-la, assim
também aquele que discorre quer elevar-se às altas regiões da ciência tem
absoluta necessidade de conhecer o mecanismo e funcionamento de sua potência
intelectiva.
Mas há esta
diferença: que na aeronave pode romper-se uma peça ou parar-se o motor, e então
toda a habilidade do piloto é inútil; mas no vôo intelectual toda a culpa das
quedas ou erros está em quem o dirige, pois o entendimento por si mesmo nem se
para nem se rompe.
Nosso
entendimento é um organismo espiritual complicadíssimo e universal, porque ele,
entendendo, se faz todas as coisas segundo um dito popular: “intellectus
intelligendo fit omnia”.
A direção deste organismo é o objeto próprio da lógica. Mas o estudo dele e de
suas partes, sua anatomia, a chamemos assim, o conhecimento claro e distinto de
seus atos, potências e formas, é objeto de outra ciência, a qual batizou
Aristóteles com o nome de Perihermenias, que significa: “Da Intepretação”.
Interpretação
de que? Da linguagem, que é o único espelho em que o entendimento pode
fitar-se, contemplar-se, estudar-se e conhecer-se a si mesmo. A linguagem é o entendimento
encarnado em sons articulados pelo homem. A interpretação da linguagem é o
vestíbulo da ciência, a verdadeira propedêutica, ou ciência primeira, que o
estudante deve adquirir. Todos sabeis que a lógica começa com as noções de
percepção, termo, nome, verbo, juízo, oração, preposição, suposição,
universais, predicáveis. Pois bem, todas elas são próprias de Perihermenias,
não da Dialética, cujo objeto próprio é o raciocínio, que é onde cabe o
artifício.
A Perihermenias aristotélica, a encontrará no comentário das obras do filósofo
estagirita: a maior parte do que Boécio escreveu está dedicada a comentar a
Perihermenias: pelos comentários a este livro começam as obras de Alberto Magno
e São Tomás: também Scot julgou necessário descer a este terreno e assim o
primeiro do primeiro tomo de suas obras é a “Gramática Especulativa”, e o
segundo os comentários a Perihermenias.
Isto prova,
senhores, que no fundo aqueles grandes gênios pressentiam a persuasão íntima de
que ao estudo das coisas significadas pelas palavras há de preceder o dos modos
como se concebem e significam as coisas mesmas. Porque o modo de significar é
sempre igual ao modo de entender, mas o modo de entender não é sempre igual ao
modo de ser que a coisa tem fora do entendimento. Todo o real existe, mas a
mente humana concebe muitíssimas vezes a essência das coisas prescindindo de
sua existência; e em tal estado de abstração as coisas tomam na mente um modo
de ser diverso do que têm fora dela.
Por isto,
São Tomás e Scot indicam acertadamente que a classificação das palavras não se
toma de seu significado, mas do modo de significar. Substantivo não é um
vocábulo que significa substância, mas algo “por modo de substância”, e assim
são substantivos os vocábulos brancura,
virtude, morte; coisas que em si não são substâncias. Verbo não é um
vocábulo que signifique ação, porque então a mesma palavra ação seria verbo, mas um vocábulo que significa algo “por modo de
ação ou paixão”, como disse o Angélico; isto é, algo como movimento medido pelo
tempo, embora este algo seja a mesma substância, como o Santo Doutor escreve
tratando do ver SER.
E já que
tratamos do progresso das ciências, é muito notável que esta definição do
verbo, dada pelo Doutor Angélico, e que é a única verdadeira, esteve quase
setecentos anos esquecida pelos homens, mesmo pelos filósofos tomistas: ao
menos eu não vi aceita por ninguém, até que eu a fiz minha em 1908. Um exemplo
de que nem sempre as gerações posteriores se aproveitam dos avanços que fizeram
as anteriores.
Outro
exemplo. Na Perihermenias aristotélica, escrita há dois mil e duzentos anos, se
encontra que os casos relativos do nome, isto é, o genitivo, o dativo e o
ablativo, não são nomes ou substantivos. Esta doutrina é filosoficamente certa,
porque a relação incorporada ao nome lhe retira de sua categoria de
substantivo, que é categoria absoluta, e lhe constitui na categoria relativa de
adjetivo ou de advérbio: assim em “Manta de viagem”, o caso relativo de viagem é adjetivo de manta; em “estou de viagem”, o caso
relativo é advérbio de estou.
Segundo
isto, o nominativo, o vocativo e o acusativo direto, que não implicam relação
acidental, não são casos, como expressamente indica Boécio referindo-se ao
nominativo. Pois bem, que doutrina seguem os gramáticos neste ponto? Pois que
os casos do nome são seis, dando a entender que tanto o nome é o genitivo como
o nominativo, ou tanto o caso é o nominativo como o ablativo: coisa irracional
e contrária a verdadeira doutrina que conta já dois mil e duzentos anos de
existência. Que diria seu autor se visse que depois de vinte e dois séculos
ainda segue o mundo cego à luz que ele acendeu em seu livro?
II
Não vou fazer
aqui um tratado de Interpretação nem de Gramática; aos amigos de saber e
conhecer estas coisas lhes recomendo minha obra latina Perihermenias, dada à luz em 1920, ou minha Gramática Geral, publicada em 1922, mas há de notar o que creio
conveniente submeter à consideração deste Congresso.
A distinção
entre a existência e a essência das coisas e sua separação mental é lei de
nosso entendimento, de tal maneira, que constitui duas ordens de atos e
potências mentais, duas ordem de vocábulos na linguagem.
A ordem
segundo a qual se refere a existência e seu signo na linguagem é somente o
verbo finito ou pessoal: todas as demais palavras, inclusive o verbo infinito
ou impessoal, são signos da ordem primeira, ou das essências concebidas sem
incluir nem excluir a existência.
Cada
palavra absoluta, isto é, o substantivo, o adjetivo, o verbo e o advérbio
frequentemente têm duas caras, uma à mente, e outra à coisa externa. As
combinações do elemento lógico, que são os atos e potências mentais, com o
elemento real, ou os atos e potências reais, dão origem a oito modos, que eu
chamo transcendentais, quatro em
cada ordem, como verás; e quero advertir que este estudo dos modos
transcendentais, base e fundamento da Gramática e da Filosofia, é o que
propriamente merece o nome de anatomia
do entendimento. Apesar de sua importância, não a encontrará completa em
nenhum autor, fora das minhas obras; pois até agora, os filósofos, seja por que
for, se contentaram em examinar dois dos oito modos ditos, que são o juízo e o
conceito universal objetivo; e mesmo neste não faltaram erros e inexatidões.
Todos
sabeis a gravidade e importância dos universais, e justo é reconhecê-la; mas ao
fim e a cabo, os universais são um só dos quatro modos transcendentais da ordem
primeira. Pois se tanta é a importância de um só modo, qual será a de todos os
quatro juntos?
Mas antes
de passar a expô-los, façamos uma observação. Os filósofos vulgarmente apontam
que as operações do entendimento são duas: a primeira é a simples apreensão; a
segunda o juízo. Mas em que se diferenciam? É por acaso só na composição de
termos? São da mesma ordem? São juízos todos os atos segundos da mente? Não há
no entendimento potências além dos atos? Questões sem solução dentro da
estreiteza dessa doutrina.
Escutem. Na
mente, chamam-se operações primeiras
as que olham só a essência; segundas,
as que olham a existência. “Prima operatio (escreve São Tomás) respicit
quidditaten rei; secunda respicit esse ipsius.” (I. Dist.19, q. 5, a. 1) As
primeiras constituem a ordem primeira; as segundas, a segunda; a distinção de
ambas as ordens está em que o objeto formal da primeira é a essência; e da
segunda a existência. Mas os Escolásticos supõem ou dão a entender que em cada
ordem não há mais que uma operação ou modo e eu digo, afirmo, sustento e provo
que em cada ordem há quatro, como agora verão.
Comecemos
pelos da ordem segunda, que são mais inteligíveis.
III
Os quatro
modos da ordem segunda são: o juízo, o império, a interrogação e a dúvida. O
juízo e o império, são atos segundos mentais; a interrogação, potência segunda;
a dúvida, pura forma segunda. Nesta ordem segunda, o ato é a determinação a um
dos dois, ao ser ou ao não ser, ao sim
ou ao não; a potência é o movimento
até o sim ou o não; a forma é a indeterminação entre ambos. O expliquemos
brevemente.
Primeiro. O
JUÍZO. – o juízo é a determinação produzida na mente pelo que é ou não é fora
dela. Uma combinação de ato segundo mental e ato segundo real, que podemos
formular assim: unum in mente circa unum
in re: este unum in re é o ser
ou o não ser, porque a existência é o ato segundo transcendental de todo ser.
O signo do
juízo na linguagem é o modo atual do verbo (o vulgarmente falado, indicativo),
pronunciado em tom afirmativo, do qual São Tomás escreve que significa per modum actus. Como exemplo ponhamos
a confissão de São Pedro: “Tu ÉS Cristo, o Filho do Deus vivo.”
Segundo. O
IMPÉRIO. – neste nome compreendemos os atos da razão imperados pela vontade,
que são seis: império, conselho, petição, uso, concessão e desejo. Nestes atos
o entendimento vai determinado pela vontade a uma coisa possível; porque
ninguém pode mandar ou aconselhar o que já está feito, nem pedir ou desejar o
que já possui. A fórmula destes atos é unum
in mente circa duo in re, porque a coisa está em potência para ser e para
seguir não sendo: são combinações de ato segundo mental e potência segunda real.
O signo
destes atos é o verbo no modo potencial: este modo compreende os que os
gramáticos chamam imperativo e subjuntivo, os quais são realmente um mesmo modo
verbal.
Sirva de exemplo o convite Venite,
adoremos.
Terceiro. A
INTERROGAÇÃO. – esta, ao contrário do império, expressa a potência segunda
mental acerca do ato segundo real: duo
in mente circa unum in re. É o lançamento da mente em busca do sim ou do não, e seu signo é o modo atual do verbo, mas pronunciado com
interrogação: – tal é a frase de Caifás a Cristo, feita com as mesmas palavras em
que São Pedro fez sua confissão: “ÉS tu o Cristo, o Filho do Deus vivo?” na
realidade o era, mas a mente de Caifás estava em potência para receber o sim ou o não. O signo da potência mental é o interrogante; o verbo expressa
o ato real.
Quarto. A
DÚVIDA. – a dúvida (de duo, dois) é
a indeterminação da mente entre dois atos reais contraditórios: duo in mente circa duo in re, e se
expressa por uma interrogação subordinada mediante o sim dubitável, por exemplo; Caifás não sabia “se Jesus era o
Cristo, Filho de Deus”. A oração dubitável é logicamente disjuntiva
contraditória, embora por elipses frequentemente se omita o segundo membro:
assim, “Não sabia se era...” inclui implicitamente “ou se não era”.
Estes são
os quatro modos transcendentais da ordem segunda, tantas quantas são as
relações entre unum y duo, in mente et
in re. Unum circa unum é o juízo; unum
circa duo, o império; duo circa unum,
a interrogação; duo circa duo, a
dúvida. A reta inteligência destes modos é uma luz refulgente que dissipa as
trevas de muitos erros. Farei aqui três aplicações.
a) Seja a primeira à Gramática. A
questão dos modos do verbo atormenta há vinte séculos os gramáticos e
filósofos. Há quem coloca dez modos, oito, seis, cinco, quatro, dois; Brocense
e Escalígero não admitiam nenhum. Eu afirmo, sem medo de equivorcar-me, que os
modos reais do verbo, os únicos que estuda a Morfologia, nem são nem podem ser
mais que três: o atual (o indicativo) que significa a ação em ato, e corresponde
ao unum in re da ordem segunda; o
potencial que significa a ação em potência ou como possível, e corresponde ao duo in re da mesma ordem; e ao formal
que prescinde de ato e potência segunda, por qual pertence à ordem primeira, e
está constituído pelo infinitivo, o gerúndio e o particípio.
A Real Academia, que antes admitia quatro modos, pôs agora cinco;
acrescentou um com o nome de potencial formado pelo futurível em ría, como amaría, sería, etc.
Gravíssimo é este erro; primeiro, porque essa forma não é de modo distinto do
indicativo; segundo, porque não significa a ação como possível, mas como
contingente, que não é igual (possível – o que pode ser; contingente – o que
pode não ser); terceiro, porque o verdadeiro potencial é o chamado imperativo,
com o subjuntivo, que significa a ação como possível, e não como contingente,
segundo disse a Academia, confundindo essas noções metafísicas. A explicação
disto pode se ver em minha Gramática Geral, nº 178.
b) A segunda aplicação é a natureza do
juízo, não bem declarada pela maior parte dos filósofos. O juízo segundo o
ditado, não é a identidade dos conceitos, nem a percepção, nem a afirmação
dela, nenhuma composição qualquer de simples apreensões, nem tampouco é a
composição do verbo com o nome, porque então a oração Laudate pueri Domino seria juízo; o juízo é logicamente o ato
segundo mental acerca de um ato segundo real, o qual implica composição de
sujeito com um verbo, que juntamente signifique os dois atos, o da mente e o da
coisa.
De onde se infere que a teoria dos que apontam que o verbo ser não tem
mais função que o de cópula, é totalmente errônea, como errôneo seria chamar a
cabeça, vínculo de união entre o tronco e o cabelo. Não há tal cópula; o
predicado formal é o verbo; os atributos que frequentemente o acompanham, são
partes materiais do predicado, e hoje já os gramáticos com bom acordo, não os
chamam predicados, mas predicativos,
como o Rev. Padre Lhobera, S.J., em sua nova Gramatica classicae latinitatis.
c) A terceira aplicação é a teoria da
verdade. A verdade lógica é a equação do entendimento da coisa, e é claro que
não há verdade ou falsidade no império, como em Elogia ao Senhor, nem na interrogação, verbi gracia. Sois cristãos? Mas por que só no juízo
há verdade? Até agora os filósofos quiseram resolver esta questão arranhando
por fora, valorizando a frase; a verdadeira solução está em que não pode haver
equação senão entre coisas iguais, e somente no juízo concorrem ato com ato,
que são coisas iguais; ato com potência ou potência com ato, não podem igualar-se;
porque um é igual a um; dois igual a um, ou um igual a dois, impossível.
IV
Venhamos já
às operações ou modos transcendentais da ordem primeira, cujo objeto são as
essências das coisas.
Na ordem
segunda, os elementos combinados sãos unum
e duo (o sim e o não), porque a
potência segunda é de contradição, como já ensinou Aristóteles. Na ordem
primeira os elementos combinados são unum
e multa entendendo que estes
adjetivos se referem a um ou a muitos indivíduos, não à existência; e assim a
potência primeira não é de contradição, mas de multiplicidade. As combinações
de unum e multa dão origem a outros quatro modos, que são: o conceito
singular, o universal, o percontativo
e o relativo.
Primeiro. O
conceito singular é unum in mente circa
unum (individuum) in re, v.g., o
conceito de Deus, do sol, desta cidade. Seu signo na linguagem são os vocábulos
singulares, como os pronomes e os nomes próprios singularizados.
Segundo. O
conceito universal é unum in mente circa
multa in re, exatamente como o ensinaram sempre os Escolásticos com
Aristóteles, v.g., o de homem, estrela, cor. Este conceito é um ou atual na mente, mas multiplicável ou
potencial nas coisas. Estes são os universais objetivos ou in re.
Terceiro. O
conceito percontativo é, pelo contrário: multa
in mente circa unum in re. Seu signo são os vocábulos percontativos quem, que, qual, onde, etc. Já os antigos gramáticos
Apolonio Díscolo, Prisciano, Herodiano de Trácia e outros ensinaram que estes
vocábulos são infinitos, no que disseram uma grande verdade, entendido que esta
infinidade é puramente mental. São, pois, signos de conceitos universais na
mente, ou subjetivos mas de coisas singulares ou atuais na realidade, pelo qual
são potenciais somente na mente.
Exemplifiquemos.
Quando chamam à minha porta e pergunto quem?,
o que chama é uma pessoa determinada; mas minha mente, ao perguntar, forma um
conceito vago, indefinido, potencial, determinável por infinito número de
sujeitos; pois a minha pergunta pode ser respondida Pedro, João, Luis, Ana, Matilde, etc. O
universal in re, como homem, é uma unidade mental que cabe
multiplicada no infinito número de indivíduos: o universal in mente, como quem?, é
uma capacidade mental em que cabe infinito número de indivíduos reais, um após
o outro, ou todos juntos.
Quarto. O
conceito relativo, cujo signo são os relativos gramaticais, é rigorosamente
universal ou potencial na mente e na coisa: uma pura forma mental a priori, que nada significa fora da
mente: seu valor depende dos antecedentes e sua função única é subordinar as
orações convertendo-as em substantivos, em adjetivos ou em advérbios de outra
oração. Não é possível nos determos em uma discussão ampla deste conceito; mas
notarei que em virtude do já dito, nenhum relativo, nem simples nem composto,
pode ser conjunção, ao contrário do que hoje ensinam a maioria dos gramáticos.
Também é de
advertir que interrogação não é mesmo que pergunta. A pergunta leva um vocábulo
percontativo, que é signo da potência primeira mental, que é de multiplicidade,
pelo qual à pergunta, Que horas são?,
pode-se responder muitas coisas: uma, duas, três horas, etc. Mas a interrogação
é potência segunda ou ad duo, pelo
qual à um interrogação, exemplo, És
cristão?, não pode-se responder mais que sim ou não. Isto é
claro, mas busques nas gramáticas e não o acharás.
Outro
exemplo de progresso pra trás; pois o que agora é novo no século XX já era
velho no século IV como consta desta passagem de Santo Agostinho: “Inter
percontationem et interrogationem hoc VETERES interesse dixerunt: quod ad
percontationem multa responderi possunt; ad interrogationem vero aut non aut etiam” (De Doctr. christ. lib. 3, c. 3). Oh!, o progresso das
ciências!
Já
examinados os quatro modos transcendentais da ordem primeira, vou fazê-los ver
que os erros acerca dos universais consistem em confundir um modo com outro, ou
não admiti-los todos.
A) Para os nominalistas, que somente
admitem a unidade no nome e não no conceito, as palavras que nós chamamos
universais in re, são sensivelmente unum in voce, ao estilo de um nome
próprio que se impõe a muitos indivíduos (e.g., muitos Pedros).
Isto é sair da questão, pôr um muro entre o conceito de a voz, e ficar
na escuridão para entender os vocábulos percontativos e relativos.
B) Para os realistas rígidos, o
universal existe formalmente fora de nós, mas como tudo o que existe em si é
indivíduo para eles não há mais que conceitos singulares, embora os chamem
universais com manifesta contradição. Isto confunde o segundo modo com o
primeiro.
C) O conceitualismo afirma que a
universalidade está somente no conceito, que é o que nós defendemos ao explicar
os vocábulos percontativos. O que para nós é unum in mente, é para eles multa;
confundem, pois, o segundo modo com o terceiro.
D) Finalmente, para Kant todas as
nossas idéias categóricas são formas mentais a priori, exatamente iguais aos conceitos relativos, como os
expliquei.
Confunde
Kant o segundo modo com o quarto. Isto equivale a chafurdarmos num caos de
relatividade lógica, cuja consequência é voltar incognoscível à realidade.
E já que
falamos da relatividade lógica de Kant, suspeito que a relatividade física de
Einstein, embora pareça contrária a de Kant, é em substância a mesma, pois
translada da mente às coisas. E assim como na relatividade de Kant aparece a
realidade das coisas, assim na relatividade física de Einstein aparece a
ciência, de sorte que as noções de tempo, espaço, força e medida se convertem
em outras tantas X ou incógnitas.
Do que foi
dito resulta que o nominalismo é verdadeiro somente nos nomes próprios
aplicados a muitos; o realismo rígido o é somente nos conceitos singulares; o
realismo mitigado é verdadeiro só nos conceitos universais objetivos; o
conceitualismo é verdadeiro somente nos percontativos, ou universais subjetivos;
o kantismo só é verdadeiro aplicado ao conceito relativo. Cada sistema tem algo
de verdade; mas a verdade total está em admitir os quatro modos transcendentais
e distingui-los convenientemente. O verdadeiro filósofo há de ser juntamente
nominalista, realista, conceitualista e relativista; mas com suficiente
discernimento para não confundir os conceitos.
Concluo,
senhores, esta breve exposição das oito relações ou modos transcendentais entre
a mente e as coisas, das oito peças que compõem esta admirável máquina do
entendimento. Quem as conheça bem, pode lançar-se às alturas científicas sem
medo de errar; aquele que ignore alguma se expõe à quedas lamentáveis. Sem o
conhecimento dos modos transcendentais da linguagem se reduz a um conjunto de
sons inexplicáveis, a um caos tenebroso; a Gramática é um puro
convencionalismo; a Metafísica um campo de luta sem armas de precisão.
Efetivamente,
hoje a Gramática se acha em um estado lamentável cheia de erros que, ao cair na
inteligência das crianças, não podem menos que arraigar fortemente e produzir
nelas uma espécie de tuberculose mental. Ao desprender-me e curar-me eu desses
erros tradicionais custou-me muitos anos de trabalho e estudo. Pois quanto mais
fácil é prevenir que curar! Pretendemos o progresso das ciências! Pois primeiro
é limpar a Gramática dos infinitos erros que contém, e escrevê-la conforme os
princípios da razão e da reta Filosofia: assim conseguiremos educar a
inteligência das crianças, fazê-las homens aptos para discorrer sem estorvos,
preservá-los desses erros que lhes incorrem e cortam as asas do entendimento.
Por esta
razão eu, que pela bondade de Deus, de quem é e a quem se deve toda a glória,
creio poder fazer alguma reforma útil na Gramática, dedico à Ele todas as
minhas forças, e ademais da segunda parte da Gramática Geral estou preparando
outras duas gramáticas elementares, uma castelhana e outra latina para
contribuir com meu óbolo à educação do entendimento da juventude e ao progresso
das ciências.
Oxalá os
filósofos modernos olhem a ciência da intepretação da linguagem com o interesse
que ela merece, imitando aos grandes filósofos da Idade Média, Boécio, Alberto
Magno, São Tomás e Scot!
A. M. D. G.